Faço parte da geração que viu Twin Peaks na TV. Exibida pela Globo aos domingos, logo após o Fantástico, a partir de 7 de abril de 1991, a série “fora da curva”, de David Lynch (cocriada por Mark Frost), girava em torno do seguinte mistério: quem matou Laura Palmer? O tema era palpitante para um Brasil que ainda comentava o maior enigma da dramaturgia brasileira até então: quem matou Odete Roitman, personagem da novela Vale Tudo, exibida pela mesma TV Globo, entre 1988 e 1989.
Twin Peaks era diferente de tudo que passava na TV naquela época, sobretudo no Brasil, cuja audiência girava em torno do humor, através de sitcoms como Três É Demais, Caras e Caretas (com Michael J. Fox, estrela do filme De Volta para o Futuro) e Primo Cruzado, ou então de enlatados, como Anjos da Lei, que apresentou Johnny Depp ao mundo.
Gravada em locações no Oeste dos EUA, ao invés de estúdios, Twin Peaks enveredava pelo mistério e triscava no sobrenatural com seus personagens esquisitos e suas sequências oníricas, incluindo aí uma mulher que carrega um tronco como se fosse um bebê e um homem com nanismo, que só veste vermelho e fala de trás para frente (ou coisa que o valha). Eu costumo dizer que Twin Peaks é a mãe das séries modernas: Dark, Ruptura, Riverdale, True Detective e tantas outras são filhas diretas da criação de David Lynch e Mark Frost, que rendeu duas temporadas clássicas, um longa-metragem, e, em 2017, uma terceira temporada, capitaneada pelos criadores originais.
Cineasta, artista plástico, dono de uma marca própria de café e adepto da meditação transcendental, Lynch era um artista fora da caixa. Morto quinta- -feira (16) passada aos 78 anos de idade, em decorrência de um enfisema pulmonar, ele costumava buscar, na meditação — prática que cultivou por mais de 30 anos —, o que ele chamava de “peixes grandes”, ao se referir a fonte de sua criatividade extraordinária.
“Ideias são como peixes”, diz na introdução do livro Em Águas Profundas – Criatividade e Meditação, lançado no Brasil, pela Gryphus. “Se você quer pegar um peixinho, pode ficar em águas rasas. Mas se quer um peixe grande, terá que entrar em águas profundas (...) Quanto mais você expande a consciência — e atenção —, mais fundo é seu mergulho em direção dessa fonte e maior será o peixe que pode pegar”.
David Lynch deixou exatos 10 longas-metragens, lançados entre 1977 e 2006, quando o diretor norte-americano anunciou que Império dos Sonhos (título brasileiro que pega carona no grande sucesso de Lynch, Cidade dos Sonhos, lançado cinco anos antes) era seu derradeiro filme para cinema. Depois disso dedicou-se a curtas esquisitos — como ele gostava —, a exemplo de What Did Jack Do? (que chegou a integrar o catálogo da Netflix), em que um policial (interpretado pelo próprio diretor) interroga um atormentado macaco.
O cinema sensorial de Lynch, bizarro e poético em muitos casos, não é para qualquer público. Embora rejeitasse o rótulo de “surrealista” e negasse que tinha influência do movimento, suas produções eram de outro mundo, falando de maneira bastante objetiva. Sonhos, realidades paralelas e rupturas violentas de enredo (caso de A Estrada Perdida) pavimentam um desfile de personagens estranhos (no sentido mais amplo da palavra), mulheres misteriosas, criaturas desfiguradas, tramas intrínsecas, buscas aparentemente sem sentidos (era um adepto do macguffin, termo popularizado por Hitchcock para objetos e situações que não tem qualquer explicação ou revelação para o espectador) e sequências antológicas, vide a orelha encontrada num jardim, que deflagra a história de Veludo Azul, um de seus filmes mais estudados.
Não é à toa que um de seus enredos mais “normais” seja tão impactante numa filmografia diferentona: Uma História Real narra a cruzada de um idoso pelos EUA, a bordo de um reles cortador de gramas, para reatar com o irmão enfermo do outro lado do país. É aquele filme de jornada transformadora, exemplo único numa filmografia que tem personagens errantes (Coração Selvagem), exposição do grotesco (O Homem Elefante) e bizarrices experimentais (Eraserhead, seu primeiro filme).
David Lynch achava que os filmes bastavam por si só, e não gostava de dar explicações sobre as questões que ele próprio deixava abertas em seus filmes, assim como não comentava o adjetivo que a crítica deu aos seus filmes, apelidando-os de “lynchianos”. Perguntado em uma entrevista se Deus tinha espaço em sua vida, o cineasta respondeu: “Acredito que Deus é o maior homem-ideia de todos os tempos; o rei absoluto da criatividade, que construiu um palco fantástico para nós atuarmos. E, atuando, temos a alegre oportunidade de fazer nossas pequenas criações, baseadas nas ideias que foram espalhadas pelo Absoluto, para que as aproveitássemos”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de janeiro de 2025.