Notícias

Artigo

De que são feitos dias perfeitos?

publicado: 23/04/2024 10h28, última modificação: 30/04/2024 14h11
Dias Perfeitos.jpeg

A rotina tem seu encanto: a leitura antes de dormir em ‘Dias Perfeitos’ | Foto: O2 Play/ Divulgação

por André Cananéa*

Todo dia ele faz tudo sempre igual: desperta com o céu ainda escuro, ao som da vassoura de piaçava que a vizinha usa para varrer a calçada. Escova os dentes, apara o bigode, faz a barba, rega as plantas, veste seu uniforme, recolhe a máquina de fotografia analógica, um molho de chaves. Abre a porta e contempla o dia, com um leve sorriso. Vai até uma máquina e compra um café em lata, como se fosse uma Coca-Cola.

Entra no carro e escolhe uma fita cassete para tocar enquanto se dirige para o trabalho. Executa seu ofício com máxima dedicação, almoça contemplando as copas das árvores (e, eventualmente, as fotografa). Encerra seu expediente, vai a uma casa de banhos, faz o asseio e sai para jantar sempre na mesma birosca, onde o garçom lhe serve uma bebida com um brinde: “Por um dia duro de trabalho!”. Volta para casa, lê um livro e vai dormir.

O diretor alemão Win Wenders ensina em seu novo filme, Dias Perfeitos, disponível na plataforma Mubi, que os dias são perfeitos quando nós estamos felizes e satisfeitos com a nossa própria vida. Esse é o caso do caladão Hirayama (Koji Yakusho, vencedor do prêmio de melhor ator do Festival de Cannes em 2023). No dia em que seu cotidiano metódico é abalado por uma série de fatores, os dias deixam de ser perfeitos e tudo começa a dar errado.

Dias Perfeitos é mais uma obra-prima do diretor de Paris, Texas e Asas do Desejo. Repleto de camadas, o filme contrasta a magnitude urbana e moderna de Shibuya, no Japão, com a simplicidade de um trabalhador de meia idade responsável por limpar os banheiros públicos da cidade - e que banheiros! Tecnológicos, limpos e visualmente deslumbrantes.

Hirayama é um analógico numa sociedade digital extremamente ansiosa e consumista. Esse retrato é feito com a ajuda dos coadjuvantes que perpassam o dia a dia do protagonista, como seu supervisionado no trabalho, o jovem Takashi (Tokio Emoto), elétrico, sempre falando gírias da Geração Z (“Ela é 9 de 10”) e em busca de conquistar uma jovem garota, que ao pegar carona no carro de Hirayama, se encanta com a música de Patti Smith, “Redondo beach”.

Aliás, nesse ambiente nipônico se destaca a trilha de artistas que cantam em inglês, safra 1960/1970. “The house of the rising sun”, do The Animals, é a trilha escolhida pelo protagonista para ir ao trabalho. Quando a sobrinha de Hirayama faz uma visita ao tio, ela conhece não só esse objeto chamado fita cassete (“Posso colocar no meu iPhone?”, pergunta), mas também a fabulosa “Brown eyed girl”, um dos clássicos de Van Morrison.

O filme termina ao som de Nina Simone cantando a arrebatadora “Feeling good”, mas ainda há Lou Reed, tanto com a música que dá nome ao filme (“Perfect days”), como com sua antiga banda, Velvet Underground (“Pale blue eyes”), “(Sittin’ on) The dock of the bay” (Ottis Redding), “Sunny afternoon” (The Kinks) e uma obscura faixa dos Rolling Stones, “(Walkin’ thru the) Sleepy city” - no Mubi, todas as músicas possuem legendas em português.

Indicado ao Oscar de melhor filme internacional deste ano, Dias Perfeitos foi rodado em apenas 15 dias. Esse era o tempo que Wim Wenders tinha com o ator Koji Yakusho, que já havia se comprometido a realizar um filme de samurai. Wenders também optou por gravar numa “janela” (nome que se dá ao formato da tela) pouco usual, 4 x 3, ao invés da tradicional WideScreen. Em um vídeo que circula por aí, o diretor justifica: “Nós filmamos em lugares pequenos e muito apertados, tanto nos banheiros, como no quarto de Tomi (como ele se refere à Yakusho). E se eu filmasse em CinemaScope, você nunca veria o chão, assim como não veria o chão dos banheiros”.

Esse cuidado vem de um diretor tarimbado, que ainda tem documentários esplêndidos no currículo (Buena Vista Social Club, sobre músicos cubanos; Pina, sobre a bailarina Pina Bausch; e O Sal da Terra, a respeito do trabalho do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado), mas também sua paixão pelo cinema oriental.

No próprio Mubi, há outro filme de Wenders ambientado no Japão, Tokyo-Ga, gravado antes de Paris, Texas (1984), mas só lançado em 1985. Nele, o cineasta alemão faz um belo tributo ao colega japonês Yasujirô Ozu (1903-1963), que durante a primeira metade do século 20 fez uma série de filmes que mostram o comportamento da família japonesa ante o avanço da tecnologia. Portanto, Dias Perfeitos, de certa forma, também é uma homenagem muito particular a um dos grandes mestres do cinema japonês.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de abril de 2024.