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De volta à beatleamania

publicado: 14/01/2025 10h37, última modificação: 14/01/2025 10h37
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Os Beatles no “Ed Sullivan Show” em 1964: momento definidor para a banda | Foto: Divulgação

por André Cananéa*

Beatles ‘64, documentário dirigido por David Tedeschi sob a batuta do cineasta Martin Scorsese, que assina a produção (os dois trabalharam juntos em outro documentário imprescindível, Rolling Thunder Revue, sobre a turnê de Bob Dylan em 1975), é a resposta para quem pensa que o assunto “Beatles” já esgotou. O documentário responde que ainda há muito a ser explorado, entre abordagens e material inédito. O filme está disponível no catálogo do Disney+.

A partir do registro audiovisual feito pelos irmãos Albert e David Maysles, ambos já falecidos, costurado com depoimentos recentes de fãs, alguns de alto gabarito, como a vocalista do lendário grupo The Ronettes, Ronnie Spector (cuja irmã chegou a namorar Ringo), e o cantor Smokey Robinson (de quem os Beatles gravaram “You’ve really got a hold on me” no LP With The Beatles), e ainda a escritora Jamie Bernstein, filha do notável maestro Leonard Bernstein, além de entrevistas exclusivas com os Beatles remanescentes, Paul e Ringo, o filme fala sobre um tema bastante caro aos fãs, mas com o frescor de um olhar cinematográfico sobre os bastidores do fenômeno Beatles.

Basicamente, Beatles ‘64 é o ponto de vista de Scorsese (sim, dele mesmo) sobre a beatlemania e a passagem dos Beatles pelos EUA em fevereiro de 1964, cujo ponto alto foi a famosa apresentação do programa Ed Sullivan Show, visto por impressionantes 70 milhões de espectadores americanos, um recorde. “Até os ladrões pararam durante o programa”, comenta um divertido George Harrison em depoimento de arquivo, provavelmente feito nos anos 1990 (ele morreu em 29 de novembro de 2001).

O olhar de um cineasta que trouxe ao mundo obras-primas como Taxi Driver e Touro Indomável perpassa por depoimentos revisionistas, incluindo um colecionador da memorabília da época, traz à tona duas garotas sendo enxotadas por seguranças do hotel em que os Fab Four estavam e mostra até a reação dos fãs — vemos uma família assistindo ao programa de Ed Sullivan, no melhor estilo imagem-vale-mais-que-palavras, ou o que hoje os jovens chamam de “react”.

Estão lá desde a conhecida influência de artistas como Little Richard e o repertório da época, destacando o impacto que canções como “I wanna hold your hand” tiveram na América (e no mundo) do início da década de 1960, até uma história pouco contada: a maneira como a embaixada britânica esnobou os rapazes de Liverpool.

“Nossas primeiras músicas são todas diretas para os fãs, tipo ‘From me to you’, ‘She loves you’”, comenta McCartney em entrevista para o documentário, citando títulos cuja tradução é “De mim para você” e “Ela ama você”. “Acho que muito da diversão que tivemos ao criar as músicas e os discos se comunica por si só”, acrescenta.

E, claro, nessa busca, Scorsese busca brindar os espectadores com pérolas deliciosas. Em um dos momentos do filme, o próprio diretor aparece entrevistando Ringo, quando pergunta se eles gostaram da Nova York “dos filmes noir”, ao que o baterista responde: “A gente veio mesmo pela música [americana]”.

O fã desavisado poderá estranhar o início de Beatles ‘64, completamente focado no ex-presidente John F. Kennedy, morto em novembro de 1963, três meses antes do primeiro desembarque dos Beatles nos EUA. Mas aí reside outra pérola histórica. Lá pelas tantas, é descrito como foi a viagem de avião do Reino Unido até a América. Fala-se que os quatro rapazes de Liverpool estavam muito empolgados, fazendo piadas boa parte do tempo. Menos um tenso John Lennon.

“John lia os jornais e estava com um pouco de medo. Dentre tantas coisas, ele falava de Lee Harvey Oswald, do assassinato de Kennedy. Ele estava preocupado com a violência aqui [nos EUA]. Ele me dizia: ‘Isso pode mudar, Harry, passar de uma situação boa para uma ruim’”, recorda o veterano fotógrafo escocês Harry Benson, que viajou com os Beatles. Quis o destino que, quase 17 anos depois, o autor de “Imagine” fosse assassinado, assim como Kennedy, só que na calçada do edifício onde morava, em Nova York.

Bom tanto para fãs de primeira hora como para iniciantes, Beatles ‘64 também mostra que Martin Scorsese segue afiadíssimo ao documentar a história americana pelo prisma da música — são dele, também, os imprescindíveis George Harrison — Living in the Material World (2011); No Direction Home — Bob Dylan (2005); e a magnânima série de filmes The Blues (2003). Vá atrás.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 14 de janeiro de 2025.