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Desacelere

publicado: 02/05/2023 11h32, última modificação: 02/05/2023 11h32
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‘Solaris’, do cineasta russo Andrei Tarkovski, valoriza a contemplação da imagem, uma dicotomia em relação ao modo acelerado de consumir filmes - Foto: Reprodução

por André Cananéa*

Speed watching” e “Speed up songs”, dois termos em inglês que são bem danados neste mundo do consumo de conteúdo em plataformas de streaming. Eles denotam o costume que muitos usuários têm para assistir a filmes e séries, e ouvir música, de forma acelerada. Isso mesmo! Em serviços como Netflix e YouTube, é possível maratonar uma série, por exemplo, gastando menos tempo que o normal. E no Spotify, voltado à música, dá para ouvir uma canção de pouco mais de três minutos em questão de segundos.

Estudiosos da cultura moderna avaliam que é sinal dos tempos. Com muito a ver e ouvir, as pessoas querem consumir o máximo de conteúdo, sem se preocuparem com a qualidade do que estão vendo ou ouvindo, um fluxo frenético que especialistas classificam como “Fomo”, ou “fear of missing out”, uma síndrome representada pelo medo desesperado que alguns consumidores têm de deixar de assistir algo em meio a um número sem fim de títulos que jorram das plataformas todas as semanas.

Eu comentei recentemente, com amigos, que achava tudo isso uma tentativa desesperada de dilatar as 24 horas que todo ser vivo tem. Isso, claro, às custas de muita distorção. Vejamos: se o cineasta russo Andrei Tarkovski, de saudosa memória, criou suas obras a partir da contemplação da imagem, não foi para que alguém, no futuro, assistisse a um filme como Solaris (1972), que é extremamente lento, na velocidade 2x. Perde-se todo o sentido.

Outro dia eu estava revendo Intriga Internacional (1959), do mestre Alfred Hitchcock. O leitor sabe que o diretor inglês é o gênio da imagem em movimento, correto? Pois se o personagem de Cary Grant espera um tal de George Kaplan em uma estrada vazia, em meio a um descampado, Hitchcock alonga essa cena ao máximo, para dar ao espectador a noção exata de angústia e tensão que é alguém aguardar outra pessoa que demora a chegar. Se você acelera essa sequência, ignorando a construção de tempo que Hitchcock criou, você está desprezando a obra, sequer está assistindo-a.

Na arte oriental, em especial a japonesa, há um recurso chamado de “ma”, ou o campo negativo de uma obra (inclusive nas artes plásticas). O negativo, aqui, não é sinônimo de algo ruim, mas de um espaço em branco, de um “vazio existência”, de um não lugar que muitos artistas aplicam em suas obras para que ela tenha um “respiro”, ou deixe o espectador (no caso dos filmes) relaxar e processar o que está assistindo. As animações de Hayao Miyazaki estão repletas de “ma”, como quando a personagem Chihiro viaja ao lado de uma criatura estranha e absolutamente nada acontece na cena. Afinal, não era para acontecer mesmo.

Li um especialista dizer que o mundo – e, por consequente, a mente das pessoas – está mais acelerado, o que pede obras mais ágeis, o que, a meu ver, não deve ser regra. Lembro de ele ter comparado que antigamente, em um filme, era possível ver uma pessoa combinar de ir até a casa da outra e o enredo mostrá-la desligando o telefone, entrando no carro e dirigindo até lá. Hoje não há mais tempo para isso: a edição pede que, ao desligar o telefone, a cena seguinte já mostre a pessoa tocando a campainha da outra.

Na música, há artistas lançando suas próprias canções no formato acelerado. É um horror: voz aguda, compassos velozes… lembra os patinhos cantantes dos LPs da minha infância. A moda surgiu a partir do TikTok (sempre ele), quando os usuários perceberam que suas insípidas dancinhas pediam uma música mais, digamos, dinâmica. Lana Del Rey, Madonna e Michael Bublé entraram nessa onda e até o Spotify mantém uma playlist (chamada ‘Speed up Songs’) que já passou das duas milhões de curtidas.

É claro que eu entendo a vicissitude dos novos tempos, a urgência do consumo, mas não sou obrigado a concordar com isso e ainda faço coro com Lenine: “Enquanto o tempo acelera e pede pressa / Eu me recuso, faço hora, vou na valsa”. Afinal, a vida é tão rara, e respirar direito e beber água se tornam, cada vez mais, vitais para estes tempos nervosos.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 02 de maio de 2023.