Embora a confiança da população no presidente Jair Bolsonaro esteja caindo pelas tabelas, como aponta a última pesquisa do Ibope (divulgada pela Confederação Nacional da Indústria, CNI, no fim de junho) - entre abril e junho, o índice de desaprovação subiu 8%, de 40% para 48% -, a confiança de Bolsonaro, nele próprio, vai na outra mão: só aumenta.
A inauguração do Aeroporto Glauber Rocha em Vitória da Conquista, Bahia, na última terça-feira, mostrou isso. Sem amarras, mas sustentado por uma claque de assessores, simpatizantes e bajuladores (a segurança se encarregou de deixar os manifestantes bem longe da festa), Bolsonaro se pôs a discursar, um discurso bastante populista, na intenção de desfazer o mal-estar causado pelo vazamento de um comentário que havia feito junto ao ministro Onyx Lorenzoni, ao se referir aos governadores do Nordeste pejorativamente como “paraibas”.
“Somos todos ‘paraíbas’, somos todos baianos”, declarou o presidente, naquele “tapeia” típico do populista. “É um prazer estar aqui em Vitória, na Bahia. É uma honra hoje eu também ser nordestino cabra da peste”, acrescentou, produzindo palmas e ovações de um público tão legítimo quanto a sinceridade do seu discurso e que estava lá justamente para provocar o efeito de ‘O Bem Amado’ que a cena demonstrara. Com chapéu de couro na cabeça, Bolsonaro teve seu dia de Odorico Paraguaçu.
O discurso se seguiu com um "Eu amo o Nordeste”, seguido por “Afinal de contas, a minha filha tem em suas veias sangue de cabra da peste". O presidente referia-se a filha que tem com a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, cujo pai - e avô da garota - é de Crateús, no Ceará.
O que chama atenção de tudo isso é que, pouco afeito a discursos públicos e entrevistas, Bolsonaro tem se soltado depois de seis meses de governo. Tem ganhado a confiança que não demonstrou no início do mandato, quando preferia se esconder atrás do Twitter para soltar seu petardos, e começou a mostrar os dentes.
A cada passo, tem se consolidado como um engodo de ditador e as medidas recentes apontam justamente esse caminho: colocar um filho como embaixador americano, sem que ele tenha qualquer qualificação para o cargo; desqualificar um instituto sério como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e cercear a liberdade artística e intelectual ao criar filtros para a produção de longas-metragens via a Ancine (Agência Nacional do Cinema).
E triste, para não dizer trágico, que poucos dias após o presidente se pronunciar sobre essas mudanças na Ancine, ele queira tirar proveito de uma inauguração que leva o nome justamente de um dos cineastas brasileiros mais aclamados no mundo, um diretor de prestígio que combatia justamente o que Bolsonaro representa: a intolerância, o preconceito e a falta de preparo.
Os filhos de Glauber Rocha, nascido justamente em Vitória da Conquista, não deixaram barato. Paloma Rocha não compareceu ao evento em “ato de repúdio” ao presidente, justamente por ele ter limitado a festa a poucos convidados, a maioria, sua claque. "Não acho que ele poderia se misturar com meu pai de maneira alguma", disse a também cineasta.
O mais velho foi ainda mais longe. Em uma rede social, escreveu: “Por favor digníssimo senhor presidente, não emporcalhe a memória de quem ajudou a difundir a cultura nacional no mundo…” e, mais á frente, cravou: “Não tem a menor ideia de quem foi Glauber Rocha, cria uma crise com o governo da Bahia para assumir o protagonismo da inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista e que leva o nome de meu pai. Era só o que faltava”.
Diretor de obras que seguem atualíssimas, como ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ e ‘Terra em Transe’, Glauber Rocha deve ter se revirado no túmulo com a patuscada provocada pelo presidente. Logo ele, defensor da cultura e do cinema que Bolsonaro mostra que despreza, como despreza o Nordeste. Afinal, o presidente não dá a mínima para o cinema, mas mostrou, na Bahia, que de figuração, ele entende.
*publicado originalmente na edição impressa de 26 de julho de 2019.