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E a trilha de “Ainda Estou Aqui”, hein?!

publicado: 11/03/2025 09h25, última modificação: 11/03/2025 09h26

por André Cananéa*

Os discos “Legal” (1970), de Gal Costa, “Carlos, Erasmo...” (1971) e “Tom Zé” (1970) embalam o filme “Ainda Estou Aqui” (embaixo) | Fotos: Divulgação

Ainda Estou Aqui fez história: além de ter quebrado recordes de bilheteria e lotado salas dentro e fora do Brasil, ainda trouxe um inédito prêmio Oscar ao país. Passada a torcida pelo filme de Walter Salles e por Fernanda Torres (que injustamente — friso bem — acabou perdendo o prêmio de Melhor Atriz para Mikey Madison, estrela do filme Anora), vejo emergir nas redes sociais discussões e curiosidades sobre a trilha sonora do filme, marcante não só durante a projeção, mas também fora dela.

Oficialmente, a trilha sonora de Ainda Estou Aqui não foi lançada. Nas plataformas digitais, porém, pululam playlists com as 16 canções que embalam a história da família Paiva, a maioria nacional. Mas há faixas internacionais também: a clássica “Je t’aime moi non plus”, de Serge Gainsbourg e Jane Birkin; “The ghetto”, do incrível Donny Hathaway; “Petit pays”, da cabo-verdeana Cesaria Evora; e ainda a instrumental “The fight”, do compositor islandês Johann Johannsson.

Músicas de Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Juca Chaves, Tom Zé, Tim Maia, Gal Costa, Caetano Veloso, Mutantes e do sambista Nelson Sargento integram a trilha, de acordo com a lista disponível no IMDb, o principal portal sobre filmes do mundo. As canções refletem o Brasil no início dos anos 1970, tempo em que se situa o filme sobre o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva em plena Ditadura Militar e como sua família lidou com a situação, conduzida com garra pela matriarca Eunice Paiva.

Rubens foi levado por homens armados no dia 20 de janeiro de 1971. A trilha, portanto, orbita essa data, inserindo músicas lançadas pouco antes e também naquele ano. É preciso ter em mente, que no ano de 1970, seis anos após o Golpe Militar, as carreiras de Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé e Mutantes, por exemplo, ainda estavam na primeira infância, apesar de o movimento Tropicalista estar no auge.

Enquanto Tim Maia estreava em disco naquele ano (a trilha contempla “Azul da cor do mar” e “A festa do Santo Reis”, do LP seguinte), Roberto Carlos reinava nas paradas de sucesso a bordo de seu 10o álbum. No ano seguinte, o Rei lançaria seu disco mais surpreendente, de onde a trilha sonora extrai “Como dois e dois”, inédita, de Caetano, lançada na voz de Roberto.

O Roberto Carlos de 1971 faria outra deferência ao tropicalista baiano: “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, um futuro clássico da famosa parceria entre Roberto e Erasmo. Reza a lenda que a música surgiu após Roberto visitar Caetano (e Gilberto Gil) durante o exílio, em Londres, no fim de 1969.

Mas antes Caetano havia expressado sua admiração por Roberto em “Baby”, música lançada no seminal LP Tropicalia ou Panis et Circencis (1968), em um dueto com Gal Costa, cuja letra recomenda “ouvir aquela canção do Roberto”. Solo, Gal Costa comparece com “Acauã”, de Zé Dantas (famosa na voz de Luiz Gonzaga), que lançou em Legal (1970), e Tom Zé marca presença com a divertida “Jimmy renda-se”, do LP Tom Zé (1970).

“Baby” também está na trilha de Ainda Estou Aqui, só que na voz de Rita Lee, na gravação que o grupo Os Mutantes lançou em 1968. Caetano reina em Ainda Estou Aqui, com outras duas canções: “Um índio”, do disco coletivo Doces Bárbaros (1976), e “Fora da ordem”, de Circuladô (1991) — vale lembrar que o filme vai até a velhice de Eunice Paiva, na virada do século 20 para o 21.

A parceria de Roberto com Erasmo ainda emplacou outro clássico na trilha do filme: o soul “As curvas da estrada de Santos”, de 1969. Curiosamente, a música tem mais uma intersecção entre Roberto e Caetano. No livro Roberto Carlos Outra Vez – Vol. 1, o biógrafo Paulo Cesar de Araújo registra que o capixaba mostrou a canção em primeira mão ao baiano quando o visitou em Londres, dedilhando o violão do autor de “Alegria, alegria”.

Mas a parceria Roberto-Erasmo mais festejada do filme é outra: “É preciso dar um jeito, meu amigo”, faixa do LP Carlos, Erasmo… (1971), de Erasmo Carlos, cujos versos sintetizam a história da família Paiva: “Mas estou envergonhado / Com as coisas que eu vi / Mas não vou ficar calado / No conforto, acomodado / Como tantos por aí”.

E, por fim, mas não menos importante, tem “Take me back to Piauí”, lançada em compacto pela RGE em 1970 e que, na tela, embala um “twist” da família Paiva, pouco antes de o patriarca sumir. A música encerra uma contenda iniciada com “País tropical”, que Jorge Ben deu para Wilson Simonal gravar. O compacto, lançado em 1969, foi visto como ufanista, e mereceu uma resposta bem-humorada do cantor Juca Chaves: “Paris tropical” (1970). Citado na letra de Chaves, Simonal foi para a réplica, novamente com Jorge Ben na autoria. “Resposta” saiu no lado B do compacto duplo Brasil, Eu Fico, lançado meses depois, e “Take me back to Piauí” encerra a querela.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de março de 2025.