O Oscar de 2023 foi uma barbada: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo levou sete das 11 indicações que recebeu, entre elas Melhor Filme, Melhor Diretor (para os “Daniels”, Daniel Kwan e Daniel Scheinert) e Melhor Atriz (Michelle Yeoh). Mas foi a consagração de Ke Huy Quan como Melhor Coadjuvante, pelo filme sobre a dona de uma lavandaria à beira da falência que, de repente, recebe a missão de salvar o mundo da extinção atuando em vários “multiversos”, a coroação de uma história emocionante.
Após pronunciar o célebre enunciado “and the Oscar goes to…” e retirar do envelope o nome do vencedor, a atriz Ariana DeBose já o anunciou emocionada: Ke Huy Quan, prêmio saudado pelo público com uma grande ovação, com destaque para o diretor Steven Spielberg, que estava ali pelo filmaço Os Fabelmans, mas foi o diretor que deu a primeira grande chance ao ator vietanamita, então com pouco mais de 10 anos de idade, para um dos papéis principais de Indiana Jones e o Templo da Perdição.
O prêmio de coadjuvante já apontava para Ke Huy Quan, mas a explosão de emoção que tomou conta do Dolby Theater, em Los Angeles, na noite do último domingo, celebra não apenas um prêmio de cinema, mas a coroação de um dos retornos mais triunfais da história da Sétima Arte, e quem conhece a jornada do ator de 51 anos de idade, entendeu a parte do discurso em que ele diz: “Devo tudo ao amor da minha vida, minha esposa, que mês após mês, ano após ano, durante 20 anos, me disse que um dia chegaria a minha hora. Os sonhos são algo em que você deve acreditar. Quase desisti dos meus. Para todos vocês, por favor, mantenham seus sonhos vivos!”.
Ke Huy Quan levou quase 40 anos para voltar aos holofotes. Ele tinha por volta dos 12 anos quando foi escolhido para interpretar o divertido Short Round em Indiana Jones e o Templo da Perdição. O personagem é uma espécie de parceiro do personagem de Harrison Ford (ele e Quan se reencontraram no Oscar, em outro momento de pura emoção) e se mete em várias enrascadas ao investigar o sumiço de crianças de uma vila remota na Índia.
Steven Spielberg também o escalou para seu próximo projeto, Os Goonies (produção de Spielberg e direção de Richard Donner), em que entregou outro personagem leve e divertido, Short, embora com menos destaque que o longa de 1984. E só! A partir daí, ele só recebeu porta na cara.
No início dos anos 1990, Ke Huy Quan migrou para a TV, onde fez duas temporadas de uma sitcom inexpressiva (Head of the Class), se dedicou ao estudo de cinema na USC School of Cinematic Arts, tentou voltar à Hollywood, mas só conseguiu trabalhar como coordenador de dublês (reza a lenda que ele chegou a ajudar nas lutas do filme de super-herói X-Men) e diretor assistente.
“É sempre difícil fazer a transição de criança para adulto quando se é ator, mas quando você é asiático, é cem vezes mais difícil. Os seus 20 e poucos anos deveriam ser os anos dourados, mas tudo que eu fiz foi esperar o telefone tocar”, revelou Quan em uma entrevista.
Em 2018, os Daniels estavam escalando o elenco do filme que se tornaria o grande premiado do Oscar 2023, mas não encontravam ninguém capaz de fazer Waymond, o marido da protagonista Evelyn (personagem de Michelle Yeoh) que aparece em três encarnações diferentes ao longo do filme. Foi quando o codiretor Daniel Kwan topou com o perfil de Ke Huy Quan no Twitter, iniciando as conversas com o ator asiático que acabariam por dar a ele a chance de ser consagrado não apenas no Oscar, mas em outras 60 premiações voltadas ao audiovisual.
Daí o discurso ter sido tão emocionado e emocionante. Afinal, estava ali o prêmio máximo do cinema, dado a um ator asiático com mais de 50 anos que um dia fora um talento mirim em ascensão, tolhido por uma Hollywood que fechava os olhos para a diversidade, que mantinha a supremacia macho-branca-americana acima de tudo e de todos, e que hoje tenta se redimir de tantos pecados que cometeu no passado.
“Minha mãe tem 84 anos e está em casa nos assistindo. Mãe, acabei de ganhar um Oscar!”, foi a frase que amanheceu nas manchetes de todo o mundo ontem, o início do discurso de Ke Huy Quan que lembrava sua jornada rumo ao que ele próprio chamou de “sonho americano”. “Minha jornada começou em um barco, passei um ano em um campo de refugiados e, de alguma forma, acabei aqui, no grande palco de Hollywood. Dizem que histórias assim só acontecem nos filmes. Eu não consigo acreditar que isso está acontecendo comigo. Isso é o sonho americano!”.
Foi bonito! E que bom que os muros que separam os povos – norte-americanos, asiáticos, brasileiros, africanos etc. – estão cada vez mais invisíveis, dando oportunidade aos que são bons no que fazem, independente de nacionalidade, raça, língua, cor… Que continue assim.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de março de 2023.