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Edgar Allan Poe, eterno e atual

publicado: 31/10/2023 13h51, última modificação: 31/10/2023 13h51
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Bruce Greenwood (em pé) é o magnata na série ‘A Queda da Casa de Usher’ - Foto: Netflix/Divulgação

por André Cananéa*

Mike Flanagan chamou atenção quando A Maldição da Residência Hill chegou à Netflix, em 2018. Baseado na obra A Assombração da Casa da Colina, de Shirley Jackson, publicada pela primeira vez em 1959, Flanagan mostrou habilidade e, sobretudo, criatividade ao destrinchar novos caminhos para a tradicional história de casa mal-assombrada.

A parceria de Flanagan com a Netflix rendeu um total de quatro seriados até agora, o mais novo deles é A Queda da Casa de Usher, disponível desde o último dia 12, na plataforma de streaming. É um ótimo programa para este dia das bruxas, pode apostar.

Apesar de tomar emprestado um dos contos mais conhecidos de Edgar Allan Poe, a série de oito episódios não é, stricto sensu, uma adaptação do texto homônimo, mas mergulha no universo de Poe para extrair uma história original, ambientada nos EUA de 2023, espelhando, por consequência, o mundo de hoje.

Desde 1908, as histórias de Poe vêm sendo adaptadas para cinema e televisão. Bela Lugosi já foi o Dr. Mirakle na versão de Os Assassinatos da Rua Morgue de 1932; contracenou por Boris Karloff em O Gato Preto, de 1934; no ano seguinte, os dois voltaram a se encontrar em O Corvo; anos depois, em 1963, Karloff faria uma nova versão para o famoso poema, desta vez com direção de Roger Corman e Vincent Price no elenco – antes, entretanto, Corman havia dirigido Price em O Poço e o Pêndulo (1961); e Price ainda deu vida ao príncipe Próspero de O baile da Morte Vermelha em A Orgia da Morte (1964). E vou ficando por aqui, pois a lista não é pequena.

Títulos como esses batizam cada um dos oito episódios de A Queda da Casa de Usher. Entretanto, cada episódio não é a adaptação do conto, embora o leitor de Poe saiba que, nele, encontrará algum personagem, objeto ou situação que remete ao conto original. Pois é assim, recheando sua série de easter eggs, que Flanagan compõe a história do magnata da indústria farmacêutica Roderick Usher (Bruce Greenwood), cujo advogado e assessor para assuntos cabulosos (e nefastos), Arthur Pym, é vivido pelo eterno jedi Mark Hamill, o Luke Skywalker da franquia Star Wars.

Assim como no conto A Queda da Casa de Usher, Roderick tem uma irmã, Madeline (Mary McDonnell), e também encontra-se em uma certa convulsão, tanto social como de saúde. Mas as semelhanças com a história de Poe param por aí. No enredo da série, Roderick, além de bilionário, é pai de seis filhos, que vão morrendo de forma trágica em um curto espaço de dias.

Com o avançar dos capítulos, o espectador vai descobrindo que se trata de um acordo feito quando os irmãos Usher ainda eram jovens (vividos pelos atores Zach Gilford e Willa Fitzgerald, esta, soberba) com uma misteriosa mulher que se chama Verna, não só uma ótima personagem, como uma entrega impecável da atriz Carla Gugino – e se você gosta dessas curiosidades de roteiro, “Verna” é um anagrama para “raven”, título original do poema O Corvo, que já foi traduzido até por Machado de Assis (em 1883) e Fernando Pessoa (em 1924).

Assim como em A Missa da Meia-Noite, há bons monólogos críticos em A Queda da Casa de Usher de Flanagan. Machismo, prepotência, soberba, ganância, consumismo etc., são temas de algumas das falas dos personagens, retóricas que entram em consonância com o terror orgânico de Edgar Allan Poe. Nascido em 1809 e morto 40 anos depois, de causas desconhecidas, mas em situação de miséria, o horror aplicado por Poe em seus textos era extraído do luto, da melancolia, mas também da loucura e assassinatos e, como os bons textos da época, de lendas e do folclore.

Às vezes, esses discursos escorregam em piadas autodepreciativas (como quando a personagem de Carla Gugino tece críticas à produção audiovisual) ou na verborragia desenfreada, mas nada que tire o brilho de uma boa série que mostra o quanto Edgar Allan Poe segue atual e interessante. E o melhor de tudo: acessível, tanto em texto, quanto no acesso à sua produção, hoje em domínio público e publicada tanto em edições baratíssimas, quanto em volumes caprichadas, vide Edgar Allan Poe: Medo Clássico, da DarkSide Books, recheada com textos analíticos e as traduções de Machado e Pessoa, que sai na faixa dos R$ 70.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 31 de outubro de 2023.