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Elis, Nara, Elza

publicado: 25/01/2022 08h00, última modificação: 26/01/2022 09h40
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Neste mês: 80 anos de nascimento de Nara Leão; despedida da “voz do milênio” Elza Soares (foto), aos 91 anos; e os 40 anos de morte de Elis Regina - Foto: Fotos: Divulgação

tags: elza soares , elis regina , nara leão

por André Cananéa*

Estava desenhando o artigo desta terça-feira sobre os 80 anos de nascimento de Nara Leão (1942-1989) e os 40 anos de morte de Elis Regina (1945-1982), na quarta-feira da semana passada. Afinal, quis o destino unir, ao menos em data (19 de janeiro), duas brilhantes cantoras brasileiras que não se topavam – mais pela “Pimentinha” do que pela eterna musa da Bossa Nova.

Entre os muito arranca-rabos públicos, Elis chegou a dizer, em uma entrevista, que Nara havia traído cada movimento que participava (bom lembrar que ela foi da Bossa Nova à Jovem Guarda, passando pelo samba) para, em seguida, disparar: “A verdade é que Nara Leão canta muito mal, mas fala muito bem”.

O jornalista Sérgio Cabral afirma em Nara Leão, Uma Biografia que a hostilidade partia, sobretudo, de Elis Regina e lembra o dia em que ambas foram procuradas pela revista Manchete para figurar na série “As Grandes Rivalidades”, em 1967.

Escreveu Cabral: “Bem-humorada, Nara até brincou com a rival na hora das fotografias. ‘Como é? Estão dizendo por aí que não queremos posar juntas. Podemos ou não?’ Elis nada respondeu e, à medida que as fotos eram batidas, foi perdendo a paciência, até que estourou: ‘Vou embora porque não gosto de Nara Leão’. Em seguida, Carlos Marques entrevistou as duas isoladamente”.

Vale lembrar que, um ano antes dessa entrevista, ambas participaram do 2° Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, cujo resultado foi a vitória de Nara com a interpretação de ‘A banda’ (que subiu ao palco com o autor da canção, Chico Buarque) e a derrota de Elis, que defendia ‘Ensaio geral’, de Gilberto Gil, e recebeu uma sonora e histórica vaia (nessa edição, ‘A banda’ dividiu o 1º lugar com ‘Disparada’, de Geraldo Vandré, defendida por Jair Rodrigues).

E, se o leitor ainda não viu O Canto Livre de Nara Leão, o ótimo seriado que entrou recentemente no catálogo da Globo Play, veja. É excelente!

Mas aí, numa modorrenta tarde de quinta-feira, Jorge Rezende, nosso editor de Memorial, página de obituários aqui do jornal, entra na sala que eu ocupo e exclama, estupefato: – Estou vendo aqui que Elza Soares morreu!

Ao contrário da gaúcha Elis e da capixaba Nara, moças brancas e suburbanas, Elza, carioca, nasceu pobre, teve vida difícil, mas alcançou o estrelato. Em 60 anos de carreira – décadas a mais do que Elis e Nara tiveram de vida, afinal a primeira morreu aos 36 e a segunda, aos 47 –, Elza foi do inferno da vida ao estrelato dos palcos, foi empurrada ao ostracismo, resgatada por Caetano, se reinventou e ampliou seu lugar de fala como artista, mulher e negra.

Ouso dizer que Elza morreu no auge da sua carreira, aos 91 anos. Seus três últimos trabalhos (soube que deixou um disco de inéditas) são excepcionais. A Mulher do Fim do Mundo (2015), Deus é Mulher (2018) e Planeta Fome (2019) é de uma lavra em que ela foi abraçada e soube abraçar uma geração incrível de músicos e compositores com talento para dar e vender. Estamos falando de Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e tantos outros que têm feito a MPB se renovar com letras inteligentes e riffs criativos em cima de uma música eletrônica pulsante, mas bastante diferente do bate-estaca dos DJs.

 A “voz do milênio”, como foi dito exaustivamente de quinta-feira para cá, numa referência ao adjetivo que a BBC de Londres usou para classificar Elza Soares na virada de 1999 para 2000, sempre fez jus ao estrelato, mas sua carreira foi de muitos altos e baixos.

A partir do fim dos anos 1950, ela chamou a atenção com sua voz potente, capaz de interpretar um samba-jazz executado por uma big band (e você bem sabe que para cantar acima de um naipe de metais e as demais instrumentações de uma orquestra, precisa ter um gogó dos bons), de uma maneira única, fazendo uso de um scating vocal que, diz ela, aprendeu carregando lata d’água na cabeça.

Se tornou uma das grandes intérpretes do Brasil até ser – ela e muitas das cantoras de samba-canção da sua época – rifada pelas gravadoras, que buscavam um som mais contemporâneo ali pelo meado dos anos 1970. Mas ela seguiu em frente e veio desaguar nesse projeto eletrônico lo-fi com letras de muito empoderamento e contestação social. Um projeto que a levou a palcos de festival de rock até teatros, como A Pedra do Reino, em João Pessoa.

E a ser reverenciada por toda uma nova geração que, somada a uma geração bem mais velha, sabe que, como ela cantou em ‘Deus é Mulher’: “Mil nações moldaram minha cara / Minha voz, uso pra dizer o que se cala / O meu país é meu lugar de fala”. E que a música que ela deixou, irá ecoar, ainda, por muito tempo.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de janeiro de 2022.