por André Cananéa*
Em qualquer parte do mundo, o nome de Gilberto Gil é facilmente reconhecido. Pelo seu talento, pela defesa da cultura brasileira, pela mistura inovadora de gêneros na música, pelas canções que embalaram a vida de tanta gente. Gil é um patrimônio brasileiro. Mais: é um orgulho nacional.
O artista baiano foi xingado por um torcedor brasileiro quando entrava em um estádio no Qatar para assistir ao jogo do Brasil contra a Sérvia na quinta-feira passada (24). O torcedor, por certo, é integrante do chamado bolsonarismo, denominação da extrema direita brasileira seguidora do presidente Jair Bolsonaro com fervor doentio.
O leitor pode até discordar da palavra “doentio”, mas vejamos: Gilberto Gil, um artista de alcance internacional, um cidadão octogenário. Não provocou ninguém, estava devidamente acompanhada da esposa, Flora Gil, para assistir a um jogo, dentro de uma Copa do Mundo – que supostamente prega a unidade entre os povos, a fraternidade e a comunhão internacional –, dentro daquela vibe baiana-zen que só Gil tem.
Portanto, ouvir palavras de baixo calão a seu respeito, e inverdades, de forma ostensiva e virulenta, tudo devidamente gravado por supostos companheiros do agressor, que acharam pouco e ainda trataram de espalhar o xingamento pela infindável rede social, é o quê, se não doentio? Afinal, qual foi o crime que transformou Gil em Geni para levar pedrada? Foi ministro de Lula há décadas? Tem uma filha na equipe da transição do governo eleito? E isso é algo que faça qualquer cidadão merecer ser ostensivamente achincalhado publicamente?
Vamos pensar um pouco: qual foi o momento em que Gil veio à público denegrir a imagem de alguém, tecer teorias conspiratórias malucas, atacar com a mesma virulência quem quer que seja ou manifestar qualquer ato em desrespeito ao senso comum? Não houve.
Leio no portal do jornal O Globo que o torcedor mais evidente desse episódio, o que veste uma camisa com os dizeres “Papito Rani” se chama Ranier Felipe dos Santos Lemache e tem 43 anos. Segundo a publicação, ele admitiu que integrava o grupo que hostilizou Gil, mas nega ter xingado o artista. E em nota enviado ao jornal, escreveu: “Gostaria de me solidarizar com o senhor Gilberto Gil e sua família em virtude da ofensa que a ele fora proferida, uma vez que eu também não gostaria de ouvi-la”.
Atacar e recuar têm sido uma máxima do bolsonarismo. Nós vimos isso ao longo de quatro anos. Mas o ataque é maior que o arrependimento, sobretudo na velocidade da internet. Até o agressor emitir uma nota de desculpas, o estrago havia sido feito. Tão grande que levou o próprio Gilberto Gil a se pronunciar e, claro, agradecer à solidariedade irrestrita dos que estão fora do pequeno círculo bolsonarista. Afinal, Gil é maior que isso.
Acontece que, como citou Gil na manhã de domingo, o “terceiro turno”, além das notícias falsas que foram a combustão da campanha do presidente derrotado nas urnas, em outubro, tem atuado em uma frente ainda mais ignóbil que achar que a terra é plana: atacar os pilares artísticos que tem orgulhado o Brasil há décadas e que passam ao largo do cerco bolsonarista.
Ganhou repercussão, aqui em João Pessoa, o comentário feito por uma empresária em uma postagem da InCena Produções, quando da morte de Gal Costa, no começo deste mês. “Já vai tarde petista”, escreveu a empresária, cujo nome sequer merece ser citado, debochando do súbito falecimento da cantora, fato que comoveu o Brasil.
Surreal mesmo nem é a opinião dos simpatizantes de um Brasil ignorante, bruto e incivilizado, mas da juíza Monica Ribeiro Teixeira, que indeferiu uma ação de Chico Buarque contra Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, com o seguinte argumento: falta de comprovação de autoria da música ‘Roda Viva’.
Seria ridículo, se não fosse trágico! Claro que a juíza Monica Ribeiro Teixeira não é ignorante (dizem que ela se baseou em notícia falsa, o que é lastimável para alguém nesse cargo). Creio no sistema jurídico e acredito piamente que quem chega à magistratura, chega por notável capacidade intelectual, argumentativa e com uma boa noção de história do Brasil. Então se não peca por ignorância, no mínimo é simpática ao bolsonarismo para tecer uma justificativa chinfrim dessas. E o jurídico de Chico, claro, já avisou que vai recorrer.
Depois de derrotado nas urnas, o bolsonarismo procura se manter vivo criando factóides e buscando meios de “aparecer” através de redes sociais, fermentando discórdias em grupos de WhatsApp, Facebook etc., através de ecos criados tanto por gente de má-fé, quanto dos inocentes úteis, ainda lobotomizados em função da eleição.
Sinceramente, isso me deixa mais triste que revoltado. Triste, pois o Brasil já foi mais sadio. Nós já torcemos juntos pelo mesmo time, já ouvimos as mesmas músicas e achincalhar publicamente, com registro audiovisual, um gigante da nossa pátria, da parte de um militante da extrema direita, em prol de um projeto político derrotado, ultrapassa a ignorância. É uma vergonha alheia em nível extremo para quem acredita em um Brasil melhor.
A Gilberto Gil e Flora, toda minha solidariedade.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 29 de novembro de 2022.