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Há 50 anos, ‘Dirty’ Harry empunhava sua Magnum .44

publicado: 07/09/2021 08h00, última modificação: 08/09/2021 09h39
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tags: perseguidor implacável , Clint Eastwood , Don Siegel , André Cananéa


Há umas sete ou oito colunas, eu comentava, aqui neste espaço, os fatos políticos e sociais que levaram 1971 a ser um ano farto em grandes discos de pop-rock. Aquele ano também foi emblemático no cinema, em especial para o cinema policial. À frente de uma renovação sobre o estilo, enredo, caracterização de personagem e violência, um filme se tornaria um ícone, daria origem a uma franquia com cinco títulos e ainda sacramentaria seu ator principal no panteão do superestrelato: Perseguidor Implacável (Dirty Harry), dirigido por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood.

Harry Callahan e sua inseparável Magnum .44 surgiram na América de Richard Nixon e do escândalo Watergate, no meio do fogo cruzado entre uma onda conservadora, a luta por direitos civis, os protestos contra a Guerra do Vietnã, assassinatos políticos e a explosão do tráfico de drogas, atrelado a uma nova classe de criminosos que viria a ser retratada no longa: o psicopata violento (vivido com maestria por Andrew Robinson no longa).

Policial linha dura, de poucas palavras e muita ação, que segue a lei até onde ela funciona, e depois segue por conta própria, Harry Callahan se tornou o “Dirty” (sujo, em português) Harry por fazer justamente o trabalho arriscado que ninguém mais topa fazer. E o faz com precisão cirúrgica, sem, sequer, interromper seu almoço para abater um criminoso pego em flagrante delito. Mas Harry o faz com um propósito. A definição do roteirista John Milius, responsável pelo script da continuação, Magnum 44, lançado dois anos depois, é que “enquanto advogados praticam a lei, e não a justiça, o Dirty Harry faz justiça”.

A figura linha dura de Harry Callahan fez muito sucesso e criou um modelo de personagem macho-hétero-top que iria ecoar pelas cinco décadas seguintes, inspirando filmes como Desejo de Matar (1974), com Charles Bronson; Cobra (1986), com Sylvester Stallone; e até obras recentes, como John Wick, que entre 2014 e 2019 rendeu três filmes com Keanu Reeves do papel principal, além de ter criado falas memoráveis, como “Vá em frente, faça meu dia” – quase 20 anos depois, chegou a inspirar o discurso presidencial do conservador Ronald Regan, ao rechaçar a proposta de aumento de impostos do Congresso: “Eu tenho minha caneta de veto pronta para qualquer aumento de impostos (...) e tenho apenas uma coisa para dizer a quem quer aumentar impostos: Vá em frente, faça meu dia”.

Mas o primeiro filme da franquia não escapou da controvérsia, principalmente numa época de acirrada polarização, entre esquerda e direita, como é hoje no Brasil. Quando lançado nos Estados Unidos, a prestigiada crítica de cinema Pauline Kael (1919-2001) não viu o longa com bons olhos. Em seu artigo, publicado no jornal New Yorker do dia 15 de janeiro de 1972, ela chamou o filme de fascista: “Perseguidor Implacável é, pois, um filme de ação, mas filmes de ação sempre tiveram um potencial facista, que finalmente veio à tona”, afirmou, antes de carregar ainda mais nas tintas: “Se o crime fosse causado por dragões do mal, todos nós poderíamos ter licença para matar, como Dirty Harry. Mas como o crime é causado por privação, miséria, psicopatologia e injustiça social, Perseguidor Implacável é um filme profundamente imoral”.

Em uma entrevista revisionista pelos 30 anos de lançamento do filme, Clint Eastwood – que viveria o papel cinco vezes no cinema, até 1988, com Dirty Harry na Lista Negra – nega que houvesse qualquer leitura política por trás do filme original, ou do personagem, mesmo estando na era Nixon de extrema-direita e, sendo ele, um cidadão simpático ao partido Republicano.

Eastwood – que topou dirigir o quarto filme da franquia, Impacto Fulminante (1983) – pagou caro pela pecha de reacionário, “de direita”. Mas especialistas já passaram uma lupa na produção do ator-diretor para rebater os críticos, mostrando que o próprio Harry Callahan é favorável ao controle de armas, assim como o artista, que em 2014 chegou a fazer um filme contra a corrida armamentista (Sniper Americano). Além do mais, Eastwood se mostrou contra a pena de morte (em Crime Verdadeiro, de 1999) e a favor da eutanásia (no vencedor do Oscar Menina de Ouro, 2004) e, ao contrário do seu famoso personagem, Clint Eastwood é rigorosamente contra o preconceito de raça, credo e cor, fatos que contradizem as críticas.

Sou do time que separa a arte do artista, quando há uma separação real e nítida o que, me parece, ser o caso de Eastwood. E a figura do justiceiro, vigilante, casca-grossa pode até funcionar aos olhos do entretenimento, ou da crítica cinematográfica – particularmente, acho Perseguidor Implacável um grande filme –, mas nunca no mundo real, onde as instituições são importantes e devem ser, a todo custo, preservadas.

 *Coluna publicada originalmente na edição impressa de 07 de setembro de 2021.