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Há uma multidão em Bob Dylan

publicado: 30/06/2020 00h02, última modificação: 29/06/2020 12h10
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tags: BOB DYLAN , ROUGH AND ROWDY WAYS , ANDRÉ CANANÉA

 

Aos 79 anos, Bob Dylan volta à boa forma com Rough and Rowdy Ways, o primeiro disco com músicas próprias, e inéditas, em 18 anos (ou seja, desde Tempest). O álbum, lançado de surpresa em meio a pandemia nas plataformas digitais (e também em LP e CD, por enquanto somente no exterior) reúne 10 faixas que trazem centenas de referências extraídas do universo cultural/intelectual do vencedor do Nobel de Literatura, jogos de palavras e reflexões em letras que Dylan confessa ter escrito em transe - e, ainda segundo ele, sem metáforas desta vez, tudo muito direto (hummm… ou nem tanto).

O disco é puxado pelo single ‘Murder most foul’, que colocou Dylan pela primeira vez no topo da parada da Billboard, veja só! A canção, de 17 minutos, tem uma das maiores letras que Dylan já escreveu, um épico de 1.388 palavras distribuídas em 175 linhas que estão acomodadas em cinco longos versos, praticamente declamadas pela voz gasta e gutural do ícone do rock.

‘Murder most foul’ é um registro documental do assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy em 22 de novembro de 1963, um dos crimes mais estudados da história do mundo ocidental. A letra de Dylan costura uma série de informações e teorias acerca do crime com referências à música (Beatles, The Who, Eagles, Queen, jazz e blues em larga escala) e cinema (estão lá citações que remetem à … E o Vento Levou até A Hora do Pesadelo, passando pela comédia Um Amor do Outro Mundo, de Vincente Minnelli).

Aliás, as letras do novo álbum estão repletas desses dois mundos, cinema e música pop, mas também de passagens bíblicas, cultura greco-romana, literatura e Shakespeare. Na canção que abre o repertório, ‘I Contain Multitudes’, Bob Dylan vai de Indiana Jones aos Rolling Stones em um fluxo de consciência que parece ter dominado as composições do disco, em que o magistral jogo de palavras levam o ouvinte para uma jornada profunda, em tempo e espaço, que acaba pode revelar o pensamento, o sentimento e as contradições de um artista fundamental nos últimos 60 anos da cultura em todo o mundo.

“Não tive de lidar com muita contradição”, comentou o próprio Dylan, em entrevista sobre o novo disco publicada este mês pelo jornal The New York Times. “É o tipo de canção em que você empilha versos em fluxo de consciência, deixa descansar por algum tempo e depois remove algumas coisas”, afirmou a respeito da faixa.

Aliás, parece-me proposital que Rough and Rowdy Ways comece com  ‘I Contain Multitudes’ e termine com ‘Murder Most Foul’: além de serem as canções mais relevantes do álbum, são muito parecidas em forma e conteúdo: letras quilométricas declamadas por uma base monocórdia, um caminho estético escolhido para levar o ouvinte a se concentrar na voz de Dylan e na mensagem que ele passa

Entre uma e outra, alguns blues, folk e baladas, como ‘I’ve made up my mind to give myself to you’ e ‘Mother of muse’. Assumindo o tom de trovador, Dylan canta: "Cavaleiro negro, cavaleiro negro, você já viu de tudo // Você já viu o mundo grande, e você tem visto-o pequeno”. A letra de ‘Black rider’ é vista por muitos como ambígua, em que ele poderia estar se referindo tanto a morte que se aproxima, como uma crítica velada ao governo Trump.

Citando a bíblia e costurando referências religiosas, ele celebra a memória do bluesman Jimmy Reed (1925-1976) no blues ‘Goodbye Jimmy Reed’. ‘Crossing the Rubicon’, outro blues, este, mais lento, traz outra letra quilométrica repleta de novos “easter eggs”, como diz a garotada de hoje. Nela, Dylan volta a falar da morte: “Três milhas ao norte do purgatório - e a um passo do além -, orei diante da cruz e beijei as garotas e cruzei o Rubicão”, canta, em referência ao rio cruzado por Júlio César, em 49 a.C. Metafórico? Talvez... 

Antes de meditar sobre a imortalidade em “Key West (philosopher’s pirate)”, perto do fim do disco, ele cruza referências de Scarface (estrelado por AL Pacino) e O Poderoso Chefão (com Marlon Brando) em ‘My own version of you”, outra canção recheada com citações bíblicas e shakespereanas.

“Key West (philosopher’s pirate)” é uma faixa de quase 10 minutos que, para mim, traz a letra mais pessoal de um disco repleto de referências autobiográficas (ele nega; diz que escreve sobre o mundo, de maneira geral). 

Aqui, ele embarca em uma jornada pela rodovia com destino às ilhas Keys (na Flórida) cantando “‪Key West é um lugar para estar / Se você procura por imortalidade” e celebrando tanto os mitológicos escritores beats Allen Ginsberg, Gregory Corso e Jack Kerouac, quanto os ícones do blues e do rock Louis Jordan, Jimmy Reed (ele de novo) e Buddy Holly. E, sim, Dylan é alguém consciente de sua importância para o mundo.

Em Rough and Rowdy Ways, Dylan mostra (e nem precisava) porquê se tornou o primeiro músico (letrista, melhor dizendo) a ganhar um Nobel de Literatura. A combinação de palavras, a métrica e a poética de suas letras estão acima de um nível regular. O que garante um lugar de prestígio ao músico, nascido na pequena Duluth, em Key West.

*publicado originalmente na edição impressa de 30 de junho de 2020.