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Jô Soares foi à missa em João Pessoa

publicado: 03/09/2024 10h13, última modificação: 03/09/2024 10h13

por André Cananéa*

Jô Soares em 1972: um homem magro | Foto: Reprodução/ TV Globo

Ao contrário de Juca Chaves (1938-2023), Jô Soares (1938-2022) trouxe seu humor afiado e inteligente pouquíssimas vezes a João Pessoa. Única vez que eu tenho registro de uma

passagem dele por aqui se deu em abril de 1972, e o humorista foi visto pela minha mãe e pelos meus avós em locais completamente distintos — e situações bem diferentes.

Ela conta que foi ao Teatro Santa Rosa, em um sábado à noite, assistir ao espetáculo Todos Amam um Homem Gordo — de acordo com o Jornal A União, apresentado na capital paraibana nos dias 1º e 2 de abril de 1972 — em que Jô regia a plateia a fazer dois coros, um masculino e um feminino, cada qual para entoar, a plenos pulmões, dois monossílabos, “Bun” e “Da”.

O número — um dos clássicos do Jô — havia levado o espetáculo a ser censurado pela Ditadura Militar na temporada em São Paulo, pois a esposa de um coronel havia assistido à peça no Rio e achou a brincadeira uma indecência, como o próprio Jô Soares já contou em entrevista.

Meus avós, pais da minha mãe, não foram ao teatro. Mas, como de hábito, foram à missa na Igreja do Carmo, no Centro de João Pessoa. E para surpresa deles, no momento da comunhão, quem ajudava o padre a distribuir a hóstia era o próprio Jô Soares, fato registrado pela imprensa local.

Minha mãe recorda que o Jô, que ela havia visto no palco, estava muito magro, pois estava tratando um câncer de pele que descobrira recentemente, e, por esse motivo, andava muito religioso.

O assunto veio à baila em um almoço de domingo por conta do documentário Um Beijo do Gordo, disponível desde julho no streaming Globoplay. Dividido em quatro partes de uma hora, cada, a microssérie passa a limpo a trajetória do ator, apresentador, escritor, dramaturgo, humorista e músico, falecido em agosto do ano passado, aos 84 anos de idade.

Mas o documentário é bem superficial. Também pudera: espremer mais de 60 anos de uma carreira riquíssima, mais aspectos da vida privada de Jô, em pouco menos de quatro horas é deixar de lado muita coisa. Além disso, ao meu ver, a divisão é bem equivocada: em menos de 60 minutos, o primeiro episódio equilibra as origens familiares e a infância de Jô com sua passagem pelo cinema e a chegada aos programas humorísticos da Globo.

Fundamental na carreira de Jô, os programas são repassados numa velocidade supersônica, entre eles Faça Humor, Não Faça Guerra, Satiricom, Planeta dos Homens e Viva o Gordo, além de dezenas de personagens marcantes, como Capitão Gay (que fez o Brasil cantar “É o Capitão Gay, Gay, Gay…”), Reizinho (do bordão “Que que eu sou? Que que eu sou?” “Sois rei! Sois rei! Sois rei!”), Zé da Galera (quem não lembra do “Bota ponta, Telê!”?) e tantos outros…

O segundo episódio trata da estreia do talk show Jô Soares Onze e Meia, que reinou absoluto no SBT por 11 anos (entre 1988 e 1999). O terceiro versa sobre a volta à Globo, onde comandou o Programa do Jô por 16 anos e o quarto, a vida privada, o relacionamento com a terceira e mais duradoura das esposas, Flávia Pedras Soares (que ao final mostra o diamante que surgiu das cinzas do ex-marido), o apartamento duplex onde morava, como foi o cotidiano durante a pandemia de covid-19 e os últimos momentos de vida.

No meio desses quatro eixos, há a reverência de inúmeros humoristas da nova geração, que enxergam no Jô uma inspiração não só para o humor brasileiro, mas para o jornalismo — entre eles Fábio Porchat, escancarando uma breve rusga entre ele e Jô Soares.

Há depoimentos de Cláudia Raia, ex-namorada do humorista; do médico Drauzio Varella, que acabou se tornando um dos amigos mais próximos do humorista; de diretores; redatores; assessores, tanto no trabalho, quanto no lar; de todos os integrantes vivos do famoso Quinteto do Jô — especialmente Derico, que foi fundamental em um episódio envolvendo Rafael, único filho de Jô Soares, fruto do casamento do apresentador com a atriz Teresa Austregésilo. Rafael era autista e tinha um ouvido absoluto para a música, e morreu aos 50 anos de idade, em 2014.

Moradora do mesmo prédio onde morava Jô Soares, Adriane Galisteu conta histórias hilárias sobre o vizinho ilustre, de como eles faziam sanduíche de chocolate na madrugada e de como uma aposta a fez visitar o amigo na madrugada, somente de calcinha e sutiã. Um Beijo do Gordo, portanto, tem um grande mérito: mostrar ao Brasil que o país perdeu um artista de múltiplos talentos e de um carisma inesgotável.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 03 de setembro de 2024.