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João Gilberto e o malfadado ‘O Mito’

publicado: 09/07/2019 10h01, última modificação: 09/07/2019 10h01
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A Música Urbana é uma resistente loja de CD/DVD/LP localizada no Centro da cidade. Em mais de 20 anos, perdi a conta de quantos CDs comprei, ou troquei por lá. Mas lembro de um que considero um verdadeiro achado: corria o início do século 21 quando, numa tarde modorrenta de terça, ou de quarta-feira, entrei na loja e vi, exposto na altura dos meus olhos, o CD que tem uma grande importância histórica na carreira de João Gilberto: ‘O Mito’.

Lançada em 1992, o CD era a versão digital do LP triplo lançado em 1988. Ele estava lá, extremamente conservado, com seu encarte generoso praticamente intocável. Li o texto assinado por João Augusto, então diretor da EMI Odeon, e passei uma vista no de Gerald Seligman, jornalista e produtor norte-americano, todo em inglês. E segui folheando as letras das 38 canções que o pequeno disco trazia: a gênese da bossa nova na voz e no violão de seu criador. Paguei módicos R$ 10 em um CD que hoje chega a custar R$ 240 no Mercado Livre.

Este CD, ‘O Mito’, que hoje tenho na coleção, foi o pontapé de uma disputa judicial que acabou por privar o Brasil dos três primeiros e obrigatórios discos de João Gilberto. Tudo por que a EMI (atual Universal Music) havia lançado a edição em CD à revelia do Pai da Bossa Nova. E não foi só por isso que o baiano entrou na justiça, suspendendo a distribuição do Compact Disc, assim como impedindo que a EMI lançasse qualquer outro fonograma que ele houvesse gravado pela Odeon, então subsidiária da EMI: a remixagem das faixas alterou os volumes dos instrumentos e trouxe um eco fantasmagórico para a voz de João o que, para os ouvidos sensíveis e absolutos do músico, equivalia a uma unha comprida arranhando um quadro-negro.

João Gilberto já havia se queixado do LP lançado quatro anos antes, mas deixou passar. O repertório embaralhava as canções distribuídas nos discos ‘Chega de Saudade’ (1959), ‘O Amor, o Sorriso e a Flor’ (1960) e ‘João Gilberto’ (1961) e no compacto ‘Orfeu de Carnaval’ (1963). Além disso, as faixas ‘O nosso amor e ‘A felicidade’ apareciam cortadas e fundidas em um medley que encerrava o repertório, enquanto ‘Frevo’, que com essas duas e ‘Manhã de carnaval’ pertencia ao 45’’ que trazia músicas do filme de Marcel Camus, sequer entrou no CD, “por não apresentar qualquer característica de João”, conforme sublinhou João Augusto no texto do encarte.

A disputa trouxe a superfície, ainda, o pagamento dos royalties pelas músicas por parte da gravadora (ou a falta de pagamento, segundo os advogados de João). João pedia à Universal Music, que herdou o pepino, R$ 173 milhões a título de reparação. A gravadora depositou R$ 1,5 milhão em juízo, em 2015, e três anos depois, pediu nova perícia. A querela ainda não teve um fim, e deve seguir, agora, com os herdeiros do baiano que inventou a batida perfeita.

Se João Gilberto escutasse mais CDs, perceberia que esse tipo de deturpação não é exclusivo de sua música. Especialistas foram enfáticos ao afirmar que a transição do LP para o digital “matou” o grave de muitas canções, por exemplo. “O som da bateria de muitos discos de rock foi muito maltratada”, me disse, certa vez, Olga Costa, do selo/programa Microfonia, da Tabajara FM. Especialmente nesse início da década de 1990, a aurora dos compact discs.

A ação judicial movida por João foi, acima de tudo, cautelosa: ele temia que, se deixasse suas gravações nas mãos da gravadora, ela poderia vir a cometer outras arbitrariedades. Esse embargo, iniciado em 1996 abrangendo cerca de 40 fonogramas, contudo, privou os ouvintes e colecionadores brasileiros de terem reedições desses três discos preciosos, que deram régua e compasso para um gênero musical que colocaria o Brasil como um país rico em musicalidade (basta dizer que a bossa nova influenciou uma boa parcela do jazz moderno).

As fitas másters, analógicas, com esse preciso material, estão bem guardadas. Só resta a liberação para que, enfim, novos discos sejam prensados com a qualidade exigida por João Gilberto. Diferente de 1992, quando o CD ‘O Mito’ foi lançado, a tecnologia mudou muito e a as chances de uma remasterização descente desse material é muito maior - reza a lenda que o banco Opportunity, que assumiu o litígio em 2013, remasterizou os discos lendários por duas vezes, ambas rejeitadas por João.

Amigos costumavam dizer que “objetificar” a música, transformá-la em algo comercial, afetava o humor do baiano, que se realizava no ato obsessivo de criar, descobrir e reinventar acordes e melodias, na solidão de seu apartamento, ou para uma minúscula e seleta plateia. João Gilberto não gostava de gravações, tanto quanto não gostava de palco. “'Para ele, viver era difícil, cantar é que era legal', como afirmou o amigo e conterrâneo Tuzé de Abreu. A música, portanto, em João era viva e livre, incapaz de se deixar aprisionar.