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Livraria, o espaço afetivo que a internet não tem

publicado: 21/02/2023 00h00, última modificação: 23/02/2023 10h18
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Fim de uma era: em São Paulo, Livraria Cultura decretou falência no último dia 9. - Foto: Foto: Amanda Perobelli/Estadão Conteúdo

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por André Cananéa*

Parece música do Los Hermanos, que até um dia desses (quando a banda ainda estava em atividade) cantava “Todo Carnaval tem seu fim, e é o fim…”. E é o fim para a Livraria Cultura, cuja falência foi decretada pela Justiça no último dia 9. As imagens que se seguiram, de editoras retirando caixas e caixas de livros das estantes da aconchegante unidade do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, em São Paulo (SP), provocaram uma onda de melancolia na internet.

No dia seguinte, a Folha de S.Paulo conclamava seus leitores sob a seguinte manchete: “Como livrarias impactaram a sua vida, leitor? Deixe seu relato”. O concorrente Estadão também acionou os seguidores nas redes sociais, pedindo-lhes que postassem fotos de suas passagens pela livraria. As fotos, invariavelmente, vinham acompanhadas de um lamento.

Eu conheço (conhecia?!) bem a Livraria Cultura da Avenida Paulista, e fui um frequentador assíduo da unidade do Paço Alfândega, em Recife (PE), inaugurada em 2004, e fechada em 6 de julho de 2018. Comecei a frequentá-la poucos meses depois de aberta, em bate-voltas entre minha casa, em João Pessoa, e a loja do Centro do Recife.

Passava o dia inteiro lá, entre prateleiras de livros, CDs e DVDs. Numa era pré-Spotify e seus similares, era uma delícia mergulhar naquele acervo físico de CDs, examinar meticulosamente capas e contracapas de títulos que só tinham por lá mesmo, devido ao espaço a que se propunha a livraria, e poder ouvi-los antes de decidir trazer um ou outro para casa.

Se o leitor não esteve por lá, certamente não viu a seção dedicada à música clássica, jazz e blues, que ocupava o espaço de uma loja de shopping. Ela ficava isolada, numa sala de vidros, onde o freguês poderia pedir para o atencioso Rodrigo, um fã dos Rolling Stones com a bocarra-ícone da banda de rock tatuada no braço, mas com fluência impressionante em jazz e música erudita. Um interlocutor perfeito para quem queria conhecer mais sobre esses gêneros.

Sempre apontei esse diferencial da Cultura: lá não tinham meros “vendedores”, ou “repositores de prateleira”, como um amigo meu nomeou certa vez, referindo-se àqueles funcionários de grandes redes que, talvez por desconhecimento dos produtos que vendem, não consigam interagir com o cliente para além do “deixe-me ver se tem no estoque”.

A Cultura, não! Cada vez que conversava com um funcionário, encontrava um especialista na área, capaz de tabular papos sobre filmes de arte, livros de ficção científica e discos de rock de bandas do Azerbaijão, por exemplo. E é por isso que a “experiência” – como dizem os especialistas – por lá não era apenas de compra, mas de aprendizado.

Quando a Cultura sai de cena, a sociedade perde bastante. Comparo o fim da livraria ao fim das videolocadoras. Lembradas com saudosas postagens na internet, as locadoras de filmes não eram apenas locais onde a gente poderia escolher um filme e levar para assisti-lo em casa. Eram espaços onde se aprendia muito sobre cinema, em contato com o balconista (geralmente, um amante de filmes) e outros frequentadores.

Eu passei toda a minha adolescência e boa parte da vida adulta dentro de uma locadora de filmes. E esse contato era um verdadeiro curso. Não havia algoritmo “construindo” filmes para me conquistar. Ao contrário disso, havia sempre gente indicando novos caminhos. Você gosta de Rambo?! Que tal conhecer Ingmar Bergman?! Era esse tipo de sugestão “aleatória” que fazia com que clientes crescessem no entendimento de cinema, associação que as ditas inteligências artificiais que movimentam as plataformas de streaming ignoram por completo.

Li na Folha que o modelo de negócios como o da Cultura está fadado ao fracasso. Porém, após a pandemia, é crescente o número de pequenas livrarias de rua que começaram a surgir, conquistando um espaço importante de lazer e conhecimento. E é por isso que a Livraria A União, inaugurada recentemente no Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa, é um importante bastião dessa “experiência” que falei acima, de poder conviver com autores e leitores que podem acrescentar bastante à nossa vida.

Afinal, as plataformas de streaming, sejam de música, cinema e até mesmo literatura não têm, de maneira alguma, o que espaços como livrarias têm de sobra: afeto e a possibilidade de novas amizades.

*Coluna publicada na edição impressa de 21 de fevereiro de 2023.