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Loja que coleciona amigos

publicado: 12/03/2024 11h40, última modificação: 12/03/2024 11h40
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Robério Rodrigues transformou sua Música Urbana em ponto de encontro - Foto: Arquivo pessoal

por André Cananéa*

Há um meme que circula pela internet, no qual um cliente chega a uma loja de discos em busca do LP de um artista. Porém, não sabe nada além de uma curta melodia, que solfeja para o vendedor sem qualquer afinação, ritmo ou coerência. De pronto, o balconista aponta o nome da música, o intérprete, autor e o álbum em que ela foi lançada. O meme termina debochando das plataformas de streaming, como Deezer ou Spotify, incapazes de prestar o mesmo serviço ao ouvinte de música.

Aliás, não é de hoje que faço críticas às sugestões limitadas dessas plataformas, que tendem a deixar o ouvinte preso em uma bolha do que ele gosta. Então quem curte rock, dificilmente vai chegar a um bolero, ou a uma polca ou um maxixe - a não ser que, intencionalmente, procure por esses estilos.

Na loja de discos, não. Quem tinha idade para frequentar essas lojas antes do advento da internet sabe que o ato praticamente religioso de comprar discos envolvia muito mais do que chegar, escolher, pagar e ir embora. Assim como as videolocadoras - de saudosa memória -, as lojas de discos eram (e ainda são) espaços para troca de informação e enriquecimento cultural. É difícil entrar numa loja em busca de um CD ou LP do Pink Floyd e não encontrar um fã de Jackson do Pandeiro, ou de Sharon Jones & The Dap Kings que não lhe aponte novos caminhos.

A cidade de João Pessoa não tem mais videolocadoras, mas tem um bom número de lojas de discos. Já falei sobre isso aqui em A União: Óliver Discos, Tigresa Discos e Estilhaços Discos (as três em Manaíra), o tradicional Big Boy (Cruz das Armas) e o Sebo Cultural (Centro), que desde o ano passado amplia e organiza sua oferta de CDs e LPs. E tem, claro, a Música Urbana.

A MU completou 26 anos no último sábado. Fez festa no pátio, em frente à loja, na Praça Rio Branco, Centro de João Pessoa. Teve shows de rock, público imenso e até bolo. A loja existe desde 9 de março de 1998 no mesmo endereço que está hoje: a Loja B do Edifício Santana, no número 138 da Visconde de Pelotas.

A Música Urbana se confunde com seu proprietário, Robério Rodrigues, um apaixonado por rock inglês e indie norte-americano que largou a segurança do emprego contábil de uma empresa de segurança para empreender no mercado de discos, naquela época dominada pelo comércio de CDs.

Em 1998, a internet já existia, mas era discada e não se vislumbra a revolução que se daria a seguir, do consumo de quase tudo concentrado nos smartphones conectados à rede de alta velocidade. Então ainda se comprava bastante discos, CDs, sobretudo.

Vinte e seis anos se passaram, a venda de mídia física caiu, mas não a MU, que se adaptou aos novos tempos, acrescentou LPs, livros e DVDs às prateleiras e instalou uma geladeira para aplacar a sede não só de quem procura música naquele oásis, mas também uma boa cerveja gelada.

Nem a pandemia derrubou a loja. Credito isso, em parte, ao carisma de Robério, dono de tiradas fantásticas, cujo magnetismo atrai, diariamente, não clientes, mas amigos, ou a “Família MU”, como gostam de chamar os habitués do lugar. São pessoas que fazem da loja ponto de encontro para bate-papo e, invariavelmente, não saem de lá de mãos vazias.

Em 2009, por ocasião do lançamento de um documentário (disponível no YouTube) sobre os 10 anos da Música Urbana, resgatei em um blog que me aventurei a escrever para uma especialização que fiz em Redação Jornalística, um texto que havia publicado no Jornal da Paraíba de 18 de maio de 2006. Achei o link, que o leitor pode acessar aqui.

No texto, comparo a Música Urbana com a Championship Vinyl, loja fictícia onde se desenrola o enredo de Alta Fidelidade, cultuadíssimo livro de Nick Hornby, vertido para o cinema em 2000 pelas mãos do diretor Stephen Frears, com elenco encabeçado por John Cusack (se quiser vê-lo, está disponível no Star+, junto com uma série, mais recente, baseada no mesmo livro).

Em determinado trecho do texto de 2006, lamento que lugares como a Música Urbana estavam fadados ao esquecimento: “A geração ‘iPod’ não está muito preocupada com isso (garimpar discos em lojas). Nem em sair de casa para conversar sobre a influência do Led Zeppelin sobre o White Stripes. Ou que bandas legais havia em Seattle além do Nirvana e do Pearl Jam. E se o fazem, é via MSN, ora bolas”. E note que eu falo “geração ‘IPod’” (coisa de MP3), pois o Spotify, embora tenha surgido naquele ano, só chegou ao Brasil em 2014.

E que bom que eu estava errado! Que a Música Urbana - assim como as demais lojas da cidade - seguem superando as adversidades, mantendo vivo o colecionismo de discos, seja CD, LP ou até K7, e, como no caso da Música Urbana, colecionando amigos.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 12 de março de 2024.