por André Cananéa*
Os artigos que escrevo semanalmente aqui, em A União, começam com algo que vi, ouvi ou li, ou então vêm de alguma efeméride, o que se constitui em uma boa desculpa para escrever sobre um disco ou um filme antigo. Estava me preparando (ouvindo, lendo, pesquisando) para escrever sobre os 50 anos do famoso quarto álbum do Led Zeppelin, também conhecido como Led Zeppelin IV, ou “o disco dos símbolos”, que traz faixas memoráveis como 'Black dog', 'Rock and roll' e a épica 'Stairway to heaven', quando, numa rede social, o anúncio de um novo disco do grupo sergipano The Baggios me chamou a atenção.
Formado em 2004 e bastante conhecido do público indie aqui da Paraíba - o hoje power trio sergipano já passou por João Pessoa, Campina Grande e Sousa -, o Baggio conseguiu reunir dois paraibanos, Chico César e Cátia de França, numa mesma faixa, ‘Barra pesada’, presente no álbum Tupã-Rá, lançado nas plataformas digitais no início deste mês.
Tupã-Rá vem na esteira dos discos Brutown (de 2016) e Vulcão (2018), que chegaram a ser indicados ao Grammy Latino, e encerra uma trilogia. O novo trabalho combina ritmos africanos e nordestinos, e a salada é das melhores. Em outra faixa, a autoexplicativa ‘Baggios encontra Siba’, é um dueto com o rabequeiro pernambucano.
Pernambuco e Cátia de França me lembram de outro disco lançado recentemente e que eu não paro de ouvir. Baião Granfino marca a estreia solo do vocalista da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe, que se debruçou sobre o cancioneiro de Luiz Gonzaga, mergulhando em versões eletrônicas e modernas.
O disco é bom, mas é bastante contrastado com o repertório eternizado pelo Rei do Baião que, gravando a partir dos anos 1940, demorou muito a aderir a um som mais “elétrico”, por assim dizer. A história mostra que, a partir dos anos 1960, a ascensão da Bossa Nova e do Tropicalismo deixaram o velho Lua para escanteio, que ressurgiu anos depois, procurando se adequar à "música moderna” de então.
Basta lembrar de O Canto Jovem de Luiz Gonzaga, lançado em 1971, cuja capa trazia um Gonzagão mais urbano, posando sem seu tradicional chapéu de couro ou suas temáticas agrestes, aqui trocadas por arranha-céus ao fundo da imagem. O repertório procurava se conectar com a MPB “de calçada” que havia derrubado seu cancioneiro de terra batida, com releituras para Gilberto Gil ('Procissão'), Antônio Carlos & Jocafi ('Chuculatera'), nosso Vandré ('Fica mal com Deus') e até do filho Gonzaguinha ('Morena'), entre outros.
Mas a sonoridade gonzagueana mais eletrônica permitida pelo mestre talvez tenha sido a incorporação de uma guitarra, presente, por exemplo, na famosa temporada de shows que ele fez no Teatro Thereza Rachel, no Rio, em 1972, eternizada no LP/CD Volta Pra Curtir. Uma única guitarra e um baixo, elétricos, em meio à sanfona, reco-reco, triângulo e zabumba. E só.
Claro que as investidas de Gonzagão na música moderna nunca chegaram a ser tão pra frente quanto o álbum com 11 releituras que Jorge Du Peixe lançou. Samplers, dub e toda uma parafernália eletrônica embalam de ‘Assum preto’ a ‘Pagode russo’, de ‘Orelia’ a ‘Sabiá’, e ainda outras faixas “lado B”, como se dizia antigamente, como ‘Acacia amarela’ e ‘Rei Bantu’, que ganham uma voz rouca, gutural, na interpretação extremamente pessoal do vocalista d’A Nação Zumbi.
As releituras são criativas, inventivas. A sanfona de ‘Assum preto’ dá lugar a um acordeon mais “tangado” ao final da gravação, lembrando a música moderna de grupos como Gotan Project. Cátia de França divide os vocais de ‘O fole roncou’ com o anfitrião, gravação que ganhou as plataformas digitais até mesmo antes do disco, como forma de promovê-lo. Ao final da música, a paraibana entrega: “Rapaz, quem diria! Eu ouvia Luiz Gonzaga com Elba e me arrepiava. Isso é eterno”.
Não é a primeira vez que Luiz Gonzaga ganha um tributo tão eletrônico. Baião Viramundo (2000) é um CD lançado no embalo do Mangue Beat, reunindo artistas proeminentes em releituras para o Rei do Baião, revestindo o tradicional com roupagem bastante moderna, como o drum ‘n’ bass e o acid jazz.
Também não é a primeira vez que um artista contemporâneo injeta nova perspectiva ao cancioneiro antigo. Lançado em um CD já raro nos dias de hoje, Loopcinio (2005) é o resultado do experimentalismo de Thedy Corrêa para canções compostas por Lupicínio Rodrigues, incluindo ‘Volta’, ‘Nervos de aço’ e ‘Se acaso você chegasse’, que acabaram ficando bem “pop”, ao sabor da sonoridade do Nenhum de Nós, banda da qual Thedy é vocalista.
E assim, voltamos às sábias palavras de Chico Science, substituído por Jorge Du Peixe quando da morte do vocalista original da Nação Zumbi, em 1997, e eternizada no primeiro disco da banda pernambucana: modernizar o passado é mesmo uma evolução musical.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 16 de novembro de 2021.