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Madonna verde-amarelo

publicado: 07/05/2024 12h29, última modificação: 07/05/2024 12h30

por André Cananéa*

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A participação de Pabllo Vittar foi um grande momento do show de Madonna | Foto: Reprodução TV Globo

Afinal, quem é Madonna? Essa pergunta me veio à cabeça enquanto a cantora entregava um mega show para cerca de 1,6 milhão de fãs (leio na CNN que a apresentação fez de Madonna a artista solo mulher a alcançar o maior público em um show na história) nas areias da Praia de Copacabana, sábado passado. Assisti à “The Celebration Tour” do sofá da minha casa, através de uma transmissão ao vivo pela TV, e por cerca de 2h20, a cantora norte-americana procurou responder a pergunta que inicia este texto.

Madonna chegou ao Brasil com 40 anos de carreira nas costas. Tinha 25 anos quando lançou seu primeiro álbum, o homônimo Madonna, emplacando sucessos nas paradas como 'Lucky star', 'Borderline' e 'Holiday', canções que buscavam atender o pop eletrônico que era festejado nas danceterias de todo o mundo naquela época e que, embora estejam no inconsciente coletivo de toda uma geração, não traduzem a artista que ela se tornou.

Essa Madonna surgiu no ano seguinte, em 1984, quando ela começou a mostrar a que veio. O LP Like a Virgin trouxe duas canções emblemáticas: ‘Material girl’ falava de amor como consumismo material e o videoclipe da canção é uma homenagem à famosa sequência de Marylin Monroe no filme Os Homens Preferem as Loiras; e ‘Like a virgin’, em que Madonna chocou o mundo com uma performance lasciva vestida de noiva em um MTV Video Awards - e isso carimbou uma imagem na cantora tão forte que ecoa até aqui, em maio de 2024, em Copacabana.

Madonna reinou por toda a década de 1980 e começo dos 1990 com essa ousadia: discutia com todas as letras (e cores) liberdade, emancipação feminina, homossexualismo, sexo e dogmas religiosos (quem não lembra do polêmico viodeclipe de ‘Like a Prayer’?), ou seja, colocava na mesa tabus que a sociedade conservadora norte-americana (e por conseguinte, o mundo) até hoje se esquiva (e não custa lembrar que os EUA atravessaram a década de 1980 sob a tutela do republicano Ronald Reagan, que foi sucedido por outro republicano, George W. Bush, até 1993 - ambos do mesmo partido e ideologia de Donald Trump).

Portanto, é significativo que, apesar da tragédia que o Brasil vive a partir da enchente no Sul, o país que vem de um sufocante governo de direita (e ainda seja assombrado por esse fantasma) tenha parado para ouvir e, sobretudo, ver alguém que não tem só um punhado de sucessos queridos para cantar, mas que faz de sua carreira um ato político em favor das mulheres e da população LGBTQIA+, população que vive em constante tensão por conta de ameças - basta lembrar do episódio da semana passada, aqui no nosso quintal, em que uma mulher trans sofreu violência em plena praça pública e sobrou até para o colega jornalista Ulisses Barbosa, cruelmente envolvido na confusão.

Se valendo de muita dança e vídeos exibidos em telões de última geração, Madonna foi Madonna do primeiro ao último minuto. Simulou sexo em variadas posições, beijou bailarinos homens, mulheres e trans, que vez ou outra apareciam seminus, uniu erotismo e religiosidade no mesmo número, ou seja, um espetáculo regado à libertinagem, mas uma libertinagem libertária. Ou como afirmou a recém-eleita para Academia Brasileira de Letras, a professora Lilia Schwarcz, a vida pede coragem na transgressão.

A apresentação repercutiu no mundo inteiro, com muitos elogios ao espetáculo. Mas foi um show feito para o Brasil, muito tranquilo (vi muitos conhecidos meus nas redes sociais elogiando o esquema de segurança montado pela prefeitura do Rio) e com ótimas surpresas. Anitta e Pablo eram pedras cantadas, afinal são as duas maiores popstars brasileiras do momento. Nenhuma cantou, mas performaram com a anfitriã, a primeira compondo um júri ao lado de Madonna para avaliar os dançarinos (incluindo uma das filhas de Madonna, cujas irmãs e irmão também tiveram momentos no show). A segunda surgiu no encerramento, colocando a cantora americana no colo e se apresentando com bailarinos e uma pequena bateria de escola de samba, número que resgatou as cores da bandeira do Brasil das mãos da direita radical e devolveu-a à pluralidade que forma o povo brasileiro.

Não estive em Copacabana desta vez, mas sei como é estar espremido no meio de mais de um milhão de pessoas. Estive lá em 2006 para ver os Rolling Stones, e não é sobre o sacrifício para ver seus ídolos do tamanho de um Playmobil, mas de estar lá, sentir a energia e fazer parte de um momento histórico que, no caso de Madonna, mostra que o mundo precisa ser melhor do que ele é.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de maio de 2024.