por André Cananéa*
Uma morte repentina, trágica e que envolva alguém famoso, capaz de deixar, enlutados, milhares de fãs, sacode o marasmo de qualquer redação de jornal no mundo e o coração daqueles que se importam com o outro. Marília Mendonça, cantora, compositora, artista com 40 milhões de seguidores somente no Instagram (para dar um parâmetro ao leitor, na mesma rede social, o fenômeno Juliette tem 32,7 milhões) é a mais nova vítima desse infortúnio ao perder a vida - ao lado de mais quatro pessoas - em um acidente aéreo na tarde da última sexta-feira.
Particularmente, eu não tenho qualquer conexão com a obra de Marília. Ouvi algumas de suas canções muito en passant e, por isso, não sou a pessoa indicada para dimensionar a perda artística para o Brasil. Deixo isso para meus brilhantes colegas Mauro Ferreira, do G1, e Júlio Maria, d’O Estadão, que fizeram ótimos textos a respeito do caráter artístico da cantora. Entretanto, não sou completamente alheio à carreira dela.
Como um jornalista habituado a cobrir música, como se diz no jargão jornalístico, sempre olhei (ou, melhor, ouvi) para além dos meus gostos pessoais. Conheci Marília ao mesmo tempo que soube da dupla Maiara e Maraísa quando elas, as mulheres, se tornaram as figuras de proa da música sertaneja. E à medida que a popularidade de Marília crescia e ocupava mais espaço na mídia, não foi difícil topar com notícias sobre a cantora.
Foi assim que fiquei sabendo que, em 2018, ela estava em João Pessoa para fazer um show-surpresa, gratuito, no Ponto de Cem Réis, reunindo milhares de fãs, e da rixa provocada por Elba Ramalho, no ano anterior, quando a cantora paraibana criticou a presença maciça de artistas sertanejos no Maior São João do Mundo, sendo rebatida pela colega goiana, ícone do gênero.
Mas acima do artista, qualquer artista, acima de cargos, fama ou profissão, está o ser humano. Aquele que perdeu a vida abruptamente. Uma jovem mãe, que deixa orfã um bebê de quase 2 anos. Uma jovem filha, cuja mãe, desconsolada, estampava as manchetes de todos os grandes portais no fim de semana. Irmã, parente, amiga… alguém que, como muitas mulheres e homens, saiu para uma agenda de trabalho e não voltou. E não voltará nunca mais.
Aliás, ela, o tio-assessor, o produtor e os dois experientes pilotos do bimotor Beechcraft C90 King Air… cinco funerais, cinco famílias enlutadas que perderam seus entes queridos abruptamente. Uma dor imensurável para esses familiares e amigos, que só mesmo um povo de um país fraternalmente miserável não se deixa abalar. Miséria provocada por uma divisão política absurda, a ponto de friamente fuzilar o corpo de Marília e desrespeitar a dor de todos os familiares envolvidos na tragédia com impropérios de grosso calibre.
Incrédulo, li, ao longo do fim de semana, os “cancelamentos” - para usar uma palavra da moda - dirigidos à artista que acabara de morrer. Ataques que “comemoravam” a morte de “bolsonarista e transfóbica” - vários jornais mostraram que ela foi uma das primeiras artistas a ir contra o Governo Bolsonaro, enquanto o controverso episódio de transfobia, datado de agosto de 2020, a cantora se desculpou publicamente.
Isso sem falar nos ataques gordofóbicos (e, por vezes, misóginos), criticados pela Folha de SP, em texto que não poupou até o próprio jornal, que em um artigo de Gustavo Alonso, publicado na edição de sábado, lembrou que a artista “era gordinha e brigava com a balança", afirmando que recentemente a sertaneja vinha se tornando "bela para o mercado. Mas definitivamente não foi isso que o Brasil viu nela”.
Talvez fosse por Marília não ser cantora de Tik Tok, de “músicas de 20 segundos”, como brincou o Porta dos Fundos com Caetano Veloso em um episódio recente. Talvez porque Marília Mendonça tinha atitude, desafiou o machismo e, à reboque do sucesso de suas músicas, promoveu a autoestima e a valorização da mulher comum, sem filtros de rede sociais, com casa para sustentar e disposição para tornar o mundo melhor.
Aos familiares das cinco vítimas da tragédia que abalou o Brasil na última sexta-feira (li que o copiloto, Tarciso Pessoa Viana, além de dois filhos, deixa esposa grávida), só resta a solidariedade, a nossa solidariedade, a do brasileiro comum, que a despeito de arte e política, consegue escapar das ferragens ideológicas e resgatar a humanidade que nos faz irmãos, e iguais, na hora da morte.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 09 de novembro de 2021.