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'Medida Provisória’, um filmaço necessário

publicado: 19/07/2022 08h00, última modificação: 19/07/2022 09h14
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Alfred Enoch (E), Taís Araújo (C) e Seu Jorge (D) compõem o núcleo da trama

tags: medida provisória , medida provisória - o filme , André Cananéa

por André Cananéa*

Não é de hoje que a arte imita a vida. São inúmeros os filmes que, em momentos críticos da história, levaram às telas reflexões sobre opressão, racismo, desigualdade social, intolerância etc. Por exemplo: os filmes de terror que hoje chamamos de trash (“lixo”, em português) com aranhas, moscas e formigas gigantes e que povoaram o imaginário do público nos anos 1950, nada mais eram do que reflexo do temor dos experimentos atômicos que ganharam força a partir das bombas de Hiroshima e Nagasaki na década anterior.

Então, em meio a o escapismo de filmes que foram feitos apenas para entreter e lucrar, temos, também, longa-metragens que nos fazem refletir sobre a sociedade que a gente vive. Recém-chegado ao Globo Play, depois de uma campanha de enorme sucesso nos cinemas de todo país, Medida Provisória (2022), de Lázaro Ramos, é desses filmes com muito a dizer.

O enredo se passa em um futuro distópico (distópico?) bastante próximo, em um Brasil dominado por uma elite branca, racista e intolerante. Uma sociedade que deixou de chamar o povo negro de “preto”, ou “afrodescendente”, para renomeá-los por “melanina acentuada” ou “melaninados”.

Essa sociedade acaba elegendo um governo de equivalência que propõe, aos “melaninados”, que voltem para a África, para reencontrar seus ancestrais. E ainda dá a passagem para eles viajarem até o outro continente, com a certeza de, veja só, “está fazendo um favor”.

A proposta, claro, não é levada à sério, o que faz o tal governo intolerante e racista mostrar suas garras ditatoriais, baixando a Medida Provisória 1888 (não por acaso, o ano da lei da abolição da escravatura), que determina a extradição de qualquer cidadão com traços minimamente negros para migrarem para a África, até não restar nenhum “melaninado” no país.

Com a desculpa de está fazendo o “certo”, burocratas do governo como Isabel (Adriana Esteves, perfeita no papel) promovem uma verdadeira caçada a um advogado (Antônio), casado com uma médica (Capitu), e o primo dele (André). O trio, vivido, respectivamente, pelos atores Alfred Enoch (ele é britânico, descendente de brasileiros, fala português quase sem sotaque e fãs de Harry Potter lembram dele como o Dean Thomas), Taís Araújo e Seu Jorge, forma o núcleo central da trama, que se divide em duas narrativas.

Numa, Antônio e André se tornam heróis destemidos da resistência, aquartelados em um apartamento, enfrentando todo tipo de sabotagem do governo e de vizinhos racistas. Em outra linha, acompanhamos a fuga de Capitu, que acaba sendo acolhida por um grupo de refugiados. “É o novo quilombo”, questiona a médica, ao que ouve como resposta: “Não, preferimos chamar de afro bunker”.

Baseado na peça Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, levada aos palcos em 2011, Taís Araújo revelou ao programa Altas Horas que o projeto de Lázaro Ramos foi recusado por vários diretores renomados, sobrando para o próprio marido dirigir o filme, que é fantástico em sua proposta de retratar, de maneira ficcional, algo bem real do país, que é o racismo estrutural e como há gente branca que gostaria de fazer, no Brasil, o que Hitler se propôs a fazer na Alemanha nazista, uma das muitas metáforas do filme.

A narrativa é bem direta e eletrizante. Não há firulas nem espaço para dourar pílulas. E você não precisa ser negro, branco, amarelo, verde, vermelho ou cinza para se identificar com nossos dois heróis e heroína, sofrer com eles e torcer por eles, nesse Brasil que não é tão distante do que o filme mostra.

Lázaro Ramos mostra habilidade por trás das câmeras. Consegue conduzir a história tão bem que é impossível não se deixar levar pela narrativa, ora eletrizante, ora angustiante, mas sempre verdadeira. E Medida Provisória é o filme mais importante do cinema brasileiro desde Que Horas Ela Volta.

Mais: Ramos soube trabalhar bem a conexão que existe entre cinema e música na cultura negra. Com dois nomes para lá de relevantes da cena musical brasileira no elenco (além de Seu Jorge, há uma participação de Emicida), ele entregou a trilha sonora ao tarimbado Plínio Profeta, que a atuou ao lado do rapper Rincon Sapiência e do produtor Kiko de Sousa.

Aliás, um dos pontos altos do filme é como Lázaro Ramos aproveita o legado deixado por Elza Soares, que reergueu sua carreira nas duas décadas anteriores a sua morte, investindo em uma música muito mais engajada em prol da igualdade racial e denunciando as mazelas de uma sociedade sectária e preconceituosa.

E além de tudo isso, o longa nos brinda com uma discreta participação da Paraíba: a versão de ‘Preciso me encontrar’ (clássico samba de Candeia eternizado por Cartola) traz os doces vocais da “baiana de Campina Grande”, Agnes Nunes.

Que Medida Provisória, portanto, seja a janela para dias menos sombrios no país da intolerância.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 19 de julho de 2022.