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Memória curta

publicado: 12/07/2019 09h11, última modificação: 12/07/2019 09h25


O brasileiro tem memória curta. Com frequência, ouço essa afirmação, que me vem à tona por estes dias ao ler um comentário - o único, por sinal - do presidente Bolsonaro a respeito de João Gilberto: “Uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?”. A frase diz tão pouco sobre o Pai da Bossa Nova e bastante sobre o atual presidente, cujo conhecimento geral sobre cultura não vai muito além da folha de rosto de um livro curto.

Indiferente a perda de um nome de relevância maior do que Bolsonaro jamais será, o presidente sequer emitiu uma nota, nem decretou luto oficial, que é o que se espera de um Chefe de Estado. Em contrapartida, dedicou um tempo e um espaço valioso de sua conta no Twitter para lamentar a morte de MC Reaça, um inútil na Música Popular Brasileira, ocorrida pouco mais de um mês antes da de João Gilberto.

Como diria o brilhante pesquisador e escritor Ruy Castro, autor da biografia definitiva sobre a bossa nova (‘Chega de saudade’, por sinal, uma música que sintetiza o talento do triunvirato João Gilberto - Tom Jobim - Vinicius de Moraes), Bolsonaro é um presidente com estofo de vereador, e lembra, em seu artigo na Folha de SP da última quarta-feira, que até os generais da Ditadura que o presidente tanto admiram eram “intelectuais diante dele”, e cita, por exemplo, que Castello Branco gostava de teatro e que Costa e Silva teria sido um craque na matemática no Colégio Militar. “A rampa do Planalto não elevou sua estatura”, resumiu, referindo-se ao atual presidente.

Não sei se Bolsonaro mostra tamanha ignorância por falta de conhecimento ou de assessoria, ou os dois. O presidente, que é carioca, era um garoto de sete anos quando Tom Jobim lançou ‘Garota de Ipanema’ e João Gilberto conquistou a América com a batida única de seu violão, colocando o Brasil no mapa como um dos mais ricos do mundo, musicalmente. Quero crer que, por essa época, morando no Rio de Janeiro, fosse difícil não sentir o impacto que a bossa criou na cultura do país. Mesmo para uma criança de sete anos.

Nos tempos de hoje, é um dever cidadão que cada um de nós não deixe a memória se esvanecer. João Gilberto estava fora da mídia, obscurecido por suas próprias manias de não ter qualquer contato com o mundo exterior e envolvido em uma série de litígios e dívidas. Não fazia shows, não dava entrevistas, não ia ao Faustão. O último disco que lançou tem quase 20 anos. Mas ele foi um personagem importante da história do Brasil, um pino vermelho, com bastante novelo em volta, na linha mestra da MPB.

Temos a obrigação de ensinar, aos que estão próximos, a nossa história, a nossa cultura. Não faz muito tempo, nos anos 1990, para ter acesso a música de João Gilberto você precisava ter o disco, conhecer alguém que tivesse algo dele, ou esperar que ele tocasse no rádio ou aparecesse na televisão. Era um universo muito restrito. Hoje, não. Na era do conhecimento - conhecimento self-service, aliás -, a música e a obra de um artista está a um clique de distância, no Google, no Youtube, no Spotify. Ignorância deixou de ser a falta de recursos para ser uma opção de vida: só é ignorante quem quer.

Vejo com gosto o trabalho que tem sido feito, junto às escolas, sobre a vida e obra de Jackson do Pandeiro. Esse trabalho não pode parar depois que o centenário dele passar. E devemos estender a outros patrimônios artísticos do nosso Estado, mas que são pouco lembrados: João Gonçalves (não o deputado, mas o coautor de sucessos de Genival Lacerda, como ‘Severina Xique Xique’), que mora em Campina Grande; Canhoto da Paraíba, morto em 2008, e, sobretudo, Cassiano, que assim como João Gilberto, vive no obscurantismo de seu próprio autoexílio no Rio de Janeiro, sem dar entrevistas, fazer shows ou gravar qualquer material novo.

 

*publicada originalmente na edição impressa de 12 de julho de 2019