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Música paraibana e ditadura brasileira

publicado: 02/04/2024 09h20, última modificação: 02/04/2024 09h32
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João Gonçalves foi um dos músicos que teve problemas com a ditadura militar | Foto: Divulgação

por André Cananéa*

Acho que pouco se sabe sobre a relação entre a música paraibana e a ditadura militar, aquela que teve início em 1964, cujos 60 anos foram lembrados pelo Brasil no último domingo - afinal, é importante lembrar para não reproduzirmos o período mais sombrio da recente história brasileira.

A MPB combativa ao regime militar, ou seja, a música de Chico Buarque, Milton Nascimento, Gonzaguinha, chegando até ao rock dos anos 1980, que alcançou o finalzinho do regime de exceção com o grupo Legião Urbana vociferando “Que país é esse?” ou afirmando que não “protege general de dez estrelas” em “Faroeste caboclo” e, sobretudo, Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados do país depois de presos, está bem documentado em textos, filmes e livros.

Paulo César de Araújo, biógrafo de Roberto Carlos que teve seu livro censurado pelo artista, tem uma obra fundamental para o entendimento da participação da música brasileira no regime ditatorial, mas não é a MPB que eu citei no parágrafo anterior, não. Eu Não Sou Cachorro Não - Música Popular Cafona e Ditadura Militar, lançado pela Editora Record há mais de 20 anos e atualmente fora de catálogo, narra a relação que artistas chamados “bregas” ou “românticos”, como Odair José, Waldik Soriano, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo, tiveram com a ditadura brasileira.

O autor parte da tese em que esses artistas - que frequentaram as paradas de sucesso entre 1968 e 1978 - aderiram à cultura oficial durante os anos de chumbo, porém, mostra que eles foram tão ou mais perseguidos pelo regime quanto os artistas de esquerda e se debruça sobre o papel de resistência desempenhado pelos artistas cafonas, das letras à posição ideológica.

Na seara paraibana, o artista mais emblemático às voltas com as garras da ditadura militar foi Geraldo Vandré com sua “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)”. Lançada durante o Festival Internacional da Canção (FIC) da Rede Globo, em 29 de setembro de 1968 e, em seguida, registrada em compacto simples, a canção despertou a ira da cúpula militar, que não gostou nadinha de ver o país cantar versos que falavam de flores vencer o canhão, soldados “quase todos perdidos, de armas na mão” e quartéis ensinando que soldado deve “morrer pela pátria, e viver sem razão”.

Some-se a isso uma troca de farpas entre o autor da música e os militares nas páginas dos jornais do Rio de Janeiro, que culminaria com o recolhimento do disco não só das lojas, rádio e TV, mas da face da Terra, e o consequente exílio que Vandré empreendeu no exterior, após a promulgação do Ato Institucional no 5, o famigerado AI-5.

Em tempo: Luiz Gonzaga chegou a regravar “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)”, mas o compacto que trazia a canção de Vandré não durou muito tempo nas prateleiras e foi rapidamente recolhido pela polícia da ditadura. Hoje é um item raríssimo de colecionador.

No livro O Fole Roncou: Uma História do Forró, os autores Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues narram que a chegada de Genival Lacerda ao Rio de Janeiro se deu justamente na tarde de 31 de março de 1964, poucas horas após o golpe. Recepcionado pelo conterrâneo Jackson do Pandeiro, Genival estranhou a movimentação nas ruas da capital carioca, ao que ouviu do Rei do Ritmo um rápido resumo: “Agora é os verde que toma conta. Mas não pode falar nada, viu?”.

Fato conhecido, mas talvez pouco lembrado sobre esse tema envolve outro paraibano, João Gonçalves, autor de forrós de duplo sentido, muito comuns nos anos 1970 e 1980. Em uma entrevista ao Jornal da Paraíba em 2015, ele recordou que seu nome era tão marcado pela censura militar que passou a assinar suas composições com o nome da esposa, Maria da Glória Sousa.

Sucesso da carreira do cantor e compositor, “Pescaria em Boqueirão” foi uma das canções vetadas pela censura. “Eu estava em um show na Festa das Neves, em João Pessoa, e cantei essa música. No fim da minha apresentação, um rapaz pediu para que eu assinasse um papel e eu fiquei muito lisonjeado pensando que ele estava me pedindo um autógrafo. Até o cumprimentei! Mas na verdade, era uma intimação para que eu comparecesse à Delegacia da Polícia Federal”, lembrou o artista.

A música era uma das mais pedidas pelo público no show do artista, e para não voltar à delegacia, ele parou de cantar o refrão, lacuna que era preenchida pelo público: “Ô lapa de minhoca, eita que minhocão / Com uma minhoca dessa se pega até tubarão”. E assim, ele conseguiu sobreviver à ditadura militar sem ter ido preso uma única vez.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 02 de março de 2024.