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Nunca haverá outro ‘We are the world’

publicado: 15/02/2024 11h03, última modificação: 15/02/2024 11h03
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Documentário desbrava os bastidores da gravação da música ‘We are the world’ - Foto: Netflix/Divulgação

por André Cananéa*

Por trás de grandes feitos há sempre uma boa história a ser contada. É o caso da música ‘We are the world’. Se você já tinha idade suficiente para ir a uma loja de discos em 1985, sabe o fenômeno que foi esse single quando foi lançado em março daquele ano. A história dessa gravação é contada com riqueza de detalhes em A Noite que Mudou o Pop, que acaba de chegar à Netflix.

Com muitas imagens de bastidor e entrevistas atuais com alguns dos 45 artistas (incluindo técnicos de áudio e imagem) que vararam a noite de 28 para 29 de janeiro no estúdio da A&M Records, em Los Angeles (EUA), o documentário narra uma história incomum para o mundo do show business, começando por reunir uma constelação única de cantores e cantoras, feito que permanece inédito até hoje.

Segundo o filme, a coisa toda começou quando o produtor Ken Kragen e o cantor, ator e ativista Harry Belafonte, vendo que o cantor inglês Bob Geldof havia criado o supergrupo Band Aid para arrecadar fundos em prol dos famintos da Etiópia (o projeto rendeu, depois, o gigantesco Live Aid), resolveram engajar os artistas americanos a gravar uma música para amenizar a fome da África.

Coube ao “boa praça” Lionel Richie, integrante do cast de Kragen, a missão de criar a música e reunir os artistas para cantá-la. No documentário, ele diz que o primeiro a abraçar o projeto foi seu amigo Michael Jackson (“Ele me chamava de Lion-el…”, recorda o cantor). Em seguida, o coração da gravação aderiu à iniciativa, o maestro e arranjador Quincy Jones.

A questão era: como conciliar a agenda de 40 grandes artistas para estarem juntos, no mesmo estúdio, na mesma hora? A solução surgiu em meados de janeiro: aproveitar o elenco que estaria no American Music Awards, no dia 28, e ver quem poderia dar uma esticadinha até o A&M para colocar sua voz no projeto. O problema é que a produção do single só tinha dez dias para amarrar tudo!

Pelo que A Noite que Mudou o Pop narra, até aí foi fácil: quem topou, topou (houve uma insistência para que Prince, no auge do sucesso com Purple Rain, aderisse à causa, mas sem sucesso) e finalizada a premiação, os convidados rumaram para o A&M Studios, onde Michael Jackson e Quincy Jones aguardavam a turma.

E que turma! A lista ia dos veteranos Ray Charles e Dionne Warwick aos novatos nas paradas de sucesso de então, como Bruce Springsteen, Huey Lewis e Cyndi Lauper, passando por Bob Dylan, Stevie Wonder, Diana Ross, Al Jarreau, Kenny Rogers, Tina Turner, William Nelson e até os atores Dan Aykroyd e Bette Midler, entre tantos outros.

Sem agentes ou assessores e, principalmente, com o ego deixado na porta (como pediu Quincy Jones), os artistas estavam “de boas”, como dizem os jovens de hoje. Teve piada, Al Green embriagado (e em outro momento puxando um emocionante coro de ‘Banana boat song’, em homenagem à Belafonte) e até troca de autógrafos.

Teve também muito trabalho (as gravações só foram concluídas às 8h do dia seguinte), incluindo um longo debate a respeito da letra (de autoria de Lionel Richie e Michael Jackson) incluir um dialeto africano.

Um dos pontos fundamentais do documentário é a entrevista com o arranjador vocal Tom Bahler. Ele conta como foi o quebra-cabeça para definir quem faria os vocais solos e com quem faria. Assim, ele compôs grupos de dois a quatro cantores para se revezar numa estrofe. Por exemplo: Michael Jackson, Huey Lewis, Cindy Lauper e Kim Carnes. É de imaginar que Huey Lewis ocupou a vaga que seria de Prince e Madonna foi preterida no lugar de Cindy Lauper, cuja voz gasguita é um dos grandes momentos da canção.

Lembro o quanto Bruce Springsteen se destacou quando a canção saiu. O grande público não sabia, entretanto, que na noite anterior ele havia acabado de encerrar a turnê Born in the USA e estava exausto. Outro destaque da canção, Bob Dylan teve dificuldade em se encontrar na gravação. Seu vocal anasalado não harmonizava com o resto do coro e ele simplesmente não sabia que tom dar à sua parte na música, mas foi salvo pelas dicas de Steve Wonder.

A Noite que Mudou o Pop é uma preciosidade não só para quem viveu o fenômeno ‘We are the world’ na época, mas para quem se importa com os aspectos históricos da música popular do século 20. O título em português é pretensioso: a canção não mudou a música pop, mas o título original – The Greatest Night in Pop, algo como “a grande noite do pop” – é muito mais apropriado. Experimente.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 13 de fevereiro de 2024.