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O disco ‘chiaroscuro’ de Bethânia

publicado: 03/08/2021 08h00, última modificação: 03/08/2021 12h27
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‘Noturno’: o novo álbum de Maria Bethânia parte de uma uma situação melancólica para chegar uma mensagem de esperança - Foto: Foto: Jorge Bispo

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A correria do dia a dia com minhas duas famílias – a saber: minha esposa e nossos dois filhos, e o jornal A União – há tempos não me deixava desfrutar da audição de um disco inédito, desses que acabaram de sair e que pouca gente próxima, ou absolutamente ninguém, chegou junto para comentar ou dar pitacos. Esse jejum foi quebrado no fim de semana com Noturno, álbum que Maria Bethânia acabou de lançar nas plataformas de streaming e também em CD, pela Biscoito Fino.

Consegui mergulhar nesse repertório de 11 canções e um poema através do aplicativo Deezer e de um fone JBL, que me deixaram completamente imerso, absorvendo os arranjos e, sobretudo, o vozeirão de Bethânia, firme e forte aos 75 anos de idade, vidrado na (criticada) capa minimalista, na qual, sobre um branco infinito, há apenas três palavras azuis: NOTURNO, assim mesmo, em letras garrafais, e, um pouco mais abaixo, a assinatura da intérprete, Maria Bethânia. E só!

Neste tempos em que tudo é uma “experiência” – ou seja, a experiência que tal sorveteria me proporciona ao tomar um sorvete de sua fábrica artesanal, ou a experiência de comprar uma camisa em uma loja on-line –, ainda tenho minhas reservas ao ouvir um disco pelo streaming, quebrando um ritual alimentado por décadas de pegar um CD e colocá-lo no player, sem desgrudar do encarte.

Por sorte, o Deezer traz os créditos das canções, embora nesse álbum de Bethânia as letras ainda não estejam disponíveis (caso o leitor tenha interesse, o site da Biscoito Fino traz um texto e os créditos de cada música). Assim, fui tentando descortinar o cancioneiro selecionado pela própria cantora, costurando o pouco que sei de sua extensa discografia (segundo pesquisei, entre títulos de estúdio e ao vivo, já são 57 discos) com sua nova proposta artística.

O título de uma obra sempre aguça minha curiosidade. Muitos escolhem uma canção para dar nome ao seu álbum, o que não é o caso desse novo disco de Bethânia. Em uma rápida olhada nas músicas, procuro pistas sobre a ideia de um álbum chamado Noturno, um derivado da palavra noite, cuja a luz se faz necessária para vencer a escuridão para que nós, seres humanos, consigamos enxergar com clareza o que nos cerca.

O repertório abre com a clássica música de fossa ‘Bar da noite’ (“Quantos estão pelas mesas / Bebendo tristezas / Querendo ocultar / O que se afoga no copo”) e fecha com o poema ‘Uma pequenina luz’, de Jorge Sena, que surge logo na sequência de ‘Luminosidade’, do nosso Chico César.

O roteiro confirma minhas suspeitas: parte de uma uma situação melancólica para chegar uma mensagem de esperança, soprando oxalá por dias melhores, com uma luz a nos tirar das trevas que vivemos no país assolado por uma pandemia e por um (des)governo federal. “Uma pequena luz bruxuleante / Brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós / Entre o bafo quente da multidão / A ventania dos cerros e a brisa dos mares / E o sopro azedo dos que a não vêem / Só a adivinham e raivosamente assopram”, diz um trecho do poema de Sena, recitado com a conhecida intensidade dramática da cantora.

Esse passeio chiaroscuro é familiar aos ouvintes de Bethânia: a baiana segue cantando o Brasil profundo, assim como as dores e dissabores da alma, costurando clássicos e canções inéditas, novos e velhos parceiros. Um dos pontos altos do repertório é o bolero ‘Prudência’, inédita de Tim Bernardes (do ótimo grupo O Terno), que a cantora conheceu na casa do irmão, Caetano. Afinal, Bernardes, talento da nova geração, é identificado como integrante da turma dos sobrinhos, o que não o impediu de compor algo bastante maduro e tradicional (reforçado pelo arranjo acústico, com elegantes violinos) - até parece uma canção lançada nos bons discos dos anos 1980.

Da nova geração, Zeca Veloso, sobrinho da intérprete, também integra a relação de autores que forneceram canções inéditas para a baiana. Dele, Bethânia gravou ‘O sopro do fole’, cuja letra e arranjos evocam o cancioneiro rural bastante presente na obra da cantora. Habitué dos discos de Bethânia, Roque Ferreira também comparece com duas canções, ‘De onde eu vim’ e ‘Lapa santa’ (esta em parceria com Paulo Dafilin).

Mas nada me soa tão arrebatador como a faixa ‘Dois de junho’. Antepenúltima do repertório, ela quebra a sobriedade dos arranjos acústicos com uma distorção de guitarra, instrumento que, duplicado, conduz a voz de Bethânia pela estrada tortuosa da dor, da revolta e da indignação que a composição evoca.

Praticamente declamada, ‘Dois de junho’ foi escrita por Adriana Calcanhotto (que também comparece no repertório com ‘A flor encarnada’) e é praticamente um relato da trágica morte da criança Miguel, de 5 anos, em 2 de junho do ano passado, que caiu de um prédio de luxo no Recife (PE) ao ser deixado pela mãe, empregada doméstica, aos cuidados da patroa. “Miguel, cinco anos / Nome de anjo / Miguel Otávio / Primeiro e único / Trinta e cinco metros de voo / Do nono andar”, diz um trecho da letra. Um clamor por justiça com intensidade e arte.

Noturno, portanto, é a flor e o espinho, a arte e o inconformismo social, as regiões profundas do ser e da alma em busca de acalanto, e de um amanhecer mais justo e digno para todos nós, brasileiros. Obrigado, Bethânia, por continuar a ser esta voz tão lúcia e intensa.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 03 de agosto de 2021.