Sir George Martin (1926-2016) foi um grande produtor de discos. Basta dizer que ele produziu todos os álbuns dos Beatles. Ponto! E pronto! Atuando na criação de canções desde os anos 1950, nos anos 1970, após a dissolução do Quarteto de Liverpool, o produtor inglês cansou de trabalhar para os estúdios e criou seu próprio espaço para gravação de discos, o AIR Studios, no Centro de Londres.
Mas, cansado do ambiente urbano, saiu pelo mundo em busca de paz e tranquilidade. Foi quando chegou ao Caribe e encontrou a ilha de Montserrat, um lugar com não mais que 12 mil habitantes… e um vulcão! Lá, criou um estúdio lendário, o AIR Montserrat, inaugurado em 1979 e que, até ser fechado, 10 anos depois, receberia algumas das maiores lendas da música pop e registraria alguns discos icônicos, como Too Low for Zero, de Elton John, Faces, do Earth, Wind & Fire, e Steel Wheels, dos The Rolling Stones. A história desse estúdio é narrada no ótimo Under the Volcano, disponível na plataforma Star Plus.
Dirigido de forma didática pela australiana Gracie Otto, o documentário parte da ambientação do lugar (responsável por dar ao mundo o Arrow, do hit ‘Hot hot hot’, um “soca”, híbrido do calipso e que estourou no mundo inteiro), para chegar a criação do estúdio propriamente dito (que contava com tecnologia de ponta) e contar histórias de bastidor sobre os artistas que usufruíram do paradisíaco lugar, que chegou ao fim em 1989 com a passagem do furacão Hugo, seguido pela erupção do vulcão em 1995, que selou em definitivo o acesso às ruínas do casarão/estúdio, que hospedou gente como Paul McCartney, Elton John, Stevie Wonder, os Stones e tantos outros.
Fartamente ilustrado com imagens atuais da ilha e gravações caseiras da época, e impulsionado por depoimentos de gente famosa, que conta como foi a experiência de viver na ilha e gravar discos que entrariam para a história, o filme é um deleite para fãs de música e interessados em cultura pop de maneira geral.
Nem todas as celebridades deram entrevista para o documentário, mas estão lá integrantes do Police, Sting, Andy Summers e Stewart Copeland – que gravaram na ilha os antológicos Ghost in the Machine e Synchronicity, Verdine White (Earth, Wind & Fire), Nick Rhodes (Duran Duran) e Mark Knopler (Dire Straits), entre outros, além de técnicos, produtores, executivos de gravadoras e muita gente da ilha que participou da “aventura” de George Martin.
Eles lembram histórias envolvendo farras com Elton John em biroscas obscuras da ilha, Stevie Wonder (que estava lá a convite de Paul McCartney, na ilha para gravar algumas faixas de Tug Of War e Pipes Of Peace) dando uma supercanja num bar local, mas, sobretudo, o convívio de grandes astros como gente comum, vivendo vidas comuns em uma ilha remota da América Central, longe de fãs, imprensa e do caos urbanos, tranquilidade que estimulava o potencial criativo de uns, mas “travava” outros, como foi o caso dos integrantes do Duran Duran, que, no auge da carreira, não souberam lidar com a paz do lugar e voltaram ao agitado centro de Londres para conseguir terminar o terceiro disco da banda, Sevenand the Ragged Tiger.
Sozinho, Keith Richards esteve em Montserrat gravando faixas que seriam lançadas em seu primeiro álbum solo, Talk Is Cheap (nas lojas em 1988). Em seu livro de memórias, Vida, ele afirma que por essa época os Rolling Stones andavam meio de férias forçadas e admite que ele e Mick Jagger estavam se estranhando bastante, sobretudo depois da banda lançar discos fracos para os padrões Stones, o que os levaria a enveredar por trabalhos solos.
Mas uma série de reencontros, que culminaria com a gravação de Steel Wheels justamente em Montserrat, colocaria o grupo de volta aos trilhos. O produtor musical Chris Kimsey, um velho conhecido do grupo, é taxativo ao afirmar que o ambiente da ilha contribui para a reaproximação do vocalista e do guitarrista durante a gravação daquele novo álbum.
Lançado em 1989, Steel Wheeler foi o último disco a ser gravado no AIR Studios Montserrat. Pelo documentário, ficamos sabemos que assim que o grupo partiu, o Furacão Hugo chegou, trazendo destruição naquele mesmo ano. “Há somente 12 mil moradores na ilha, e 11 mil perderam seus lares. É muito triste”, lamenta George Martin, em gravação antiga, falando enquanto o documentário mostra cenas do estrago causado pelo furacão.
Somente um mês e meio após a passagem do furacão, o produtor pode voltar ao estúdio. Viu, em meio aos destroços, um piano mofado e percebeu que o estúdio havia chegado ao fim. Isso, atrelado a chegada de equipamentos digitais no mercado e orçamentos mais enxutos que as gravadoras passaram a liberar com mão de ferro.
Seis anos depois do furacão, o vulcão acordou, castigando ainda mais a pequena ilha caribenha. Pelos dados apresentados no filme, uma nuvem de cinza de cerca de 20 km de altura se formou, deixando Montserrat em uma completa escuridão, e o colorido exuberante das cidades da ilha deu lugar a uma cidade fantasma, coberta de cinzas. “Eu me lembro de passar de barco por Montserrat, anos depois da erupção e ver que parecia um inverno nuclear, tudo coberto de pó. Foi assustador e perturbador”, afirma Sting, nos momentos finais do documentário.
Embora ainda haja destroços de muitas casas – incluindo a que um dia foi o AIR Studios – a população mais uma vez conseguiu se reerguer, e George Martin foi, novamente, fundamental para a reconstrução da ilha, organizando, em 1997, o Music For Montserrat no prestigiado Royal Albert Hall, em Londres, com muitas das estrelas que passaram pelo estúdio, como Elton John, Sting, Paul McCartney, Mark Knopfler, e ainda Eric Clapton e Phil Collins, entre tantos outros. A renda do show, como também do DVD, lançado mundialmente, foi destinada à reconstrução da ilha.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 23 de maio de 2023.