por André Cananéa*
Em uma das colunas dominicais que escreve aqui mesmo, em A União, o amigo Kubitschek Pinheiro sentenciou, parafraseando a professora Zarinha: toda uma geração da MPB está chegando ao fim. Essa semana, o Brasil experimentou esse sentimento, com a saída de dois grandes artistas do palco, um pela finitude da vida; outro, por uma “aposentadoria” em função da saúde frágil.
Gal Costa, que morreu na última quarta-feira (dia 9), aos 77 anos de idade, integrava um time de bambas que ajudaram a construir a chamada MPB moderna, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. Esses doces bárbaros, entre tantos outros nomes, influenciaram a arte, a cultura e o comportamento do brasileiro nos últimos 60 anos.
Com um show no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte (MG), transmitido ao vivo pela Globoplay, Milton Nascimento se despediu de uma gloriosa carreira, de mais de 40 discos lançados ao longo de 60 anos de carreira. A última sessão de música, título da apresentação que bateu as duas horas e meia de duração, foi uma belíssima e emocionante despedida de um dos grandes cantores e compositores brasileiros de todos os tempos.
Homenagem que Gal não chegou a ter em vida, mas que sua morte desencadeou, em uma homenagem à altura de sua importância, sobretudo na Rede Globo. Somente no domingo passado, o Fantástico dedicou mais de meia-hora a entrevistas exclusivas e reportagens que ressaltam o talento sem igual da artista baiana.
“Mãe de todas as vozes”, como celebrou Nando Reis a respeito da colega baiana, com quem dividiu o palco no projeto ‘Trinca de Ases’, dá a dimensão da artista que, através de reportagens, na TV, em podcasts e portais que vi, ouvi e li nos últimos dias, buscaram explicar o que fazia de Gal uma grande cantora.
Mas Gal não foi apenas uma voz imensa, com timbres e alcances únicos, capazes de “duelar” de igual para igual com uma guitarra, por exemplo, como aparece em um vídeo que viralizou nas redes sociais, mas soube como poucas utilizar essa voz a favor de um repertório heterogêneo, deixando, em discos, a diversidade de registros que essa voz foi capaz de emitir, fosse do baião ao frevo, da balada à bossa nova, do rock ao electro-funk, se reinventando como a camaleoa que foi em décadas de carreira.
Além disso – é bom lembrar – ela também foi uma artista de comportamento ousado, que se manteve combativa com seu canto, seu gesto e seu figurino que desafiava o moralismo dos anos de chumbo da ditadura militar. Como disse Caetano, Gal falava pouco, preferia cantar. E mesmo falando pouco, disse muito.
Milton Nascimento não teria como adivinhar que sua despedida dos palcos se daria apenas quatro dias depois da morte de Gal Costa. Planejada um ano antes, a apresentação levou 50 mil pessoas ao estádio de futebol para ver o último ato da carreira de Bituca, como é carinhosamente chamado desde a infância. E o que se viu, ali, não foi só um cantor e compositor reverenciado em todo o mundo, mas uma força da natureza.
Milton venceu as limitações impostas por um estado de saúde que não lhe deixa ficar de pé, não deixa que ele toque seu violão e não tenha mais a mobilidade na mandíbula que lhe permita a emissão vocal precisa de outros tempos, mas sua voz continua íntegra e a emoção que emana da interpretação daquelas canções que fazem parte do Brasil profundo mostram o quanto Bituca é um artista também único.
Assisti ao show de Milton instalado no sofá, na companhia da esposa e do filho, Gael, de 11 anos, que tem se empenhado em ver os grandes heróis da nossa música ao vivo. Assistimos, juntos, a Gal Costa quando ela se apresentou nas areias de Tambaú em 25 de janeiro de 2014, ele ainda muito novo, com três anos de idade.
Recentemente, vimos Chico Buarque e Caetano no Teatro A Pedra do Reino, mas Milton, com ele, só pela TV (perdemos o show de 2019, em João Pessoa). E conversamos sobre como a minha geração foi formada pelo rádio e pela TV, acompanhando em uníssono esses ídolos, o que não acontece hoje, devido a fragmentação musical imposta pelo streaming e o comportamento individualizado de ouvir música através do celular, com fones plugados nos ouvidos.
Infelizmente, o mundo em que artistas são “convocados” a criar música insossa para o TikTok ou refrões infames para viralizar por uma semana não valoriza a boa canção. No Brasil de 2022, há artistas muito bons, mas sem a capacidade de envolver um grande público em torno de suas músicas.
Por isso, não é apenas uma geração que está sumindo do nosso convívio, mas todo um comportamento nosso diante da canção, da mudança de paradigma, do entendimento de que arte é transformadora. E que ela pode mudar o mundo, um país, e até você.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 15 de novembro de 2022.