Após o anúncio dos indicados ao Oscar 2025, na quinta-feira (23) passada, vi a internet ser inundada por postagens celebrando a entrada de A Substância na lista dos 10 indicados a melhor filme do ano. A comemoração tem uma razão de ser: raras vezes, um filme do gênero terror chegou a figurar entre os 10 melhores do prêmio mais importante do cinema no mundo. Em quase 100 anos de Oscar, o filme estrelado por Demi Moore (que também concorre por Melhor Atriz) é o sétimo do gênero que mereceu uma indicação.
Junto com A Substância, O Exorcista (1973), Tubarão (1975), O Silêncio dos Inocentes (1991), O Sexto Sentido (1999), Cisne Negro (2010) e Corra! (2017) integram essa pequena lista — e detalhe: nenhum deles venceu a categoria. Outro detalhe curioso: colocam na mesma cesta filmes de possessão demoníaca, fantasmas, psicopatia, thriller psicológico e suspense, que, a rigor, pertencem a gêneros distintos. Não sei de onde surgiu a lista, mas alguém teve a perspicácia de que era melhor reunir todos os títulos que provocam medo e ansiedade do que desmembrar e o número ser ainda menor.
Quem acompanha o Oscar sabe da predileção da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas por dramas humanos, históricos e biográficos. Via de regra, esse tipo de filme, geralmente com lições de moral e finais edificantes, abarcam um público bem maior e heterogêneo que os filmes de horror e suspense, mais nichados — embora muitos deles também tratem de dramas humanos, como espelhos de um lado mais sombrio e, em inúmeros casos, indigestos para o grande público.
Olhando agora em retrospecto, todos os vencedores de melhor filme nos anos 1980 são dramas com as características que eu descrevi no parágrafo anterior: em 1980, venceu Kramer Vs. Kramer; no ano seguinte, Gente como a Gente; em 1982, Carruagens de Fogo; em 1983, a cinebiografia de Gandhi; em 1984, Laços de Ternura; em 1985, outra cinebiografia, agora do compositor Mozart (Amadeus); em 1986, Entre Dois Amores (vencendo o brasileiro O Beijo da Mulher Aranha); em 1987, o drama de guerra Platoon; em 1988, O Último Imperador; e, em 1989, Rain Man.
Na década, há pouquíssimos filmes fora dessa curva entre os indicados: apenas dois filmes de ficção científica, E.T., o Extraterrestre (em 1983) e Os Eleitos (em 1984), assim mesmo ficções mais dramáticas que fantásticas.
A boa nova é que a Academia vem mudando a olhos vistos e, de certa forma, abrindo-se ao cinema mais autoral e criativo. Somente nos últimos 10 anos, premiou, na principal categoria do Oscar, filmes “fora da caixinha”, como Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), em 2015, e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, em 2023, filme cuja ousadia estética sequer teria lugar entre os indicados há cerca de 30, 40 anos.
Dirigido soberbamente por Guillermo del Toro, A Forma da Água levou o Oscar de melhor filme em 2018. A rigor, trata-se de um filme de amor deveras humano entre um “monstro” aquático e uma mulher, com personagem que encontra semelhança com O Homem Elefante, que chegou a concorrer em 1981. Ou seja, nos dias de hoje, o filme de David Lynch teria muito mais chances de levar o prêmio principal. Isso tudo sem falar na obra-prima Parasita, um drama inteligentíssimo com toques de suspense que sequer é falado em inglês (é coreano), laureado como melhor filme do ano em 2020.
Outra comemoração foi a indicação de Demi Moore pelo papel no filme da diretora Coralie Fargeat (A Substância também concorre em Melhor Roteiro Original e Melhor Maquiagem). É uma vitória para o cinema fantástico, ou uma “consolação”? Afinal, o diretor Robert Eggers e o ator Bill Skarsgård mereciam, sem sombra de dúvidas, as respectivas indicações pelo soberbo Nosferatu, que figura apenas em quatro categorias técnicas.
Nem todo filme de terror é um horror. Numa reparação história, a Academia deveria reconsiderar obras como, entre outras, Psicose (de Alfred Hitchcock); Desafio do Além (de Robert Wise); O Bebê de Rosemary (de Roman Polanski, que acabou levando o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado pelo filme); Alien, o 8o Passageiro (Ridley Scott — o filme chegou a vencer a estatueta de Melhores Efeitos Especiais) e O Iluminado (Stanley Kubrick), bem como o trabalho de seus respectivos diretores e a contribuição deles para elevar a categoria de terror e suspense a state-of-the-art do cinema.
*Coluna publica originalmente na edição impressa do dia 28 de janeiro de 2025.