Na primeira vez que conversei com Vladimir Carvalho, cineasta paraibano que nos deixou em outubro do ano passado, eu disse a ele que tinha muitas entrevistas guardadas em um gravador de áudio, desses que nós, jornalistas, utilizávamos antigamente. De pronto, ele me fez uma outra sugestão: “Grave tudo em vídeo. Assim, além do som, você também tem a imagem”.
Hoje todo mundo tem uma câmera na mão, junto aos telefones celulares. Mas isso é coisa recente. Quem cresceu na segunda metade do século 20, sabe que registrar imagens em movimento exigia uma câmera geralmente grande e não era todo mundo que topava andar para cima e para baixo com um trambolho desses. Mas Beth Carvalho topou e por mais de 50 anos, registrou, ela própria, momentos íntimos e profissionais em formatos como Super-8 e VHS.
“Eu tenho a cabeça de uma pesquisadora. Da minha própria vida também, não só da dos outros”, afirma Beth Carvalho enquanto mostra um enorme acervo particular de fitas, rolos e memorabílias a partir de imagens em VHS, por pressuposto, feitas pela cantora. Foi desse acervo que o diretor Leonardo Bruno extraiu o excelente documentário Andança — Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, recentemente incluído no catálogo da Netflix.
Produção da TV Zero, que tem no currículo diversos documentários sobre música brasileira, entre eles Herbert de Perto (sobre o paraibano Herbert Vianna, do Paralamas) e Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei, o documentário sobre Beth Carvalho é retrato íntimo da artista feito somente com preciosas imagens de arquivo que registram não só a carreira de uma das maiores sambistas do Brasil, como também do samba moderno, a partir dos anos 1970.
Seja em vídeo ou em áudio, há preciosidades históricas, como, por exemplo, Cartola apresentando duas músicas a Beth Carvalho — “As rosas não falam” e “O mundo é um moinho”, essa segunda, com o autor ponderando que não era muito a praia da intérprete. Também há gravações incríveis de Nelson Cavaquinho, mostrando composições e jogando conversa fora — e nisso, há até a versão original de “Folhas secas”. A carreira dos dois teve novo impulso a partir das gravações que Beth lançou, sobretudo Nelson, que se tornou um grande amigo da cantora.
Pelo que o filme mostra, Beth Carvalho era uma obcecada em filmar tudo, de festas de aniversário até gravações de discos em estúdio e pesquisas de repertório. No Quintal da Tia Surica, ela faz uma audição com compositores da Velha Guarda da Portela. Estão lá Casquinha, Manacéa e Monarco, além de bambas como Paulão 7 Cordas e Osmar do Cavaco no acompanhamento rítmico. Nas imagens, há o registro da data: 27 de junho de 1992.
Ativa a partir do final dos anos 1960, Beth Carvalho já era estrela do samba no início dos anos 1970, quando enfileirou um sucesso atrás do outro. Como gravava tudo e circulava bastante, colecionou registros de praticamente todo mundo que fez samba no Brasil, nas últimas três décadas do século 20, entrando pelo século 21. Gente que só é conhecida de encartes de LPs e CDs dá as caras no documentário, que vai do morro ao asfalto.
Os retratos íntimos de Beth Carvalho revelam, por exemplo, os segredos de Dino 7 Cordas, lendário violonista que revolucionou o violão de sete cordas e que está em dezenas de discos da cantora. Também a presença do lendário ator Mário Lago, coautor, entre outros clássicos, de “Ai! Que saudade da Amélia”, pelo Bar Bip Bip, tradicional reduto de samba no Rio de Janeiro. A cena, que ainda reúne os sambistas Moacyr Luz e Walter Alfaiate, abre o filme.
Em meio aos registros de música, o filme acrescenta o nascimento de Luana Carvalho, em fevereiro de 1981, filha da artista com o jogador Édson Cegonha, o qual passou a deter o espólio da cantora, após a morte de Beth Carvalho em abril de 2019.
Entre depoimentos e imagens, também percebemos uma artista engajada politicamente e indignada com gravadoras e editoras: “O compositor brasileiro é muito sacrificado. Eu gravo a música, e a música acontece. Mas a obra-prima é do compositor, foi o músico que foi lá tocar, e esse cara ganha muito mal, e o compositor ganha muito mal”, afirma em um momento do filme.
Estão lá, também, um dueto com a cantora argentina Mercedes Sosa e registros da participação de Beth Carvalho no comício das Diretas Já (no qual o futuro presidente eleito Tancredo Neves beija-lhe a mão) e de uma viagem à Cuba, onde ela chegou a autografar uma nota de R$ 1 para o falecido ditador Fidel Castro.
Ativa até o fim da vida, quando chegou a se apresentar deitada devido a problemas na coluna, Beth Carvalho fez sua própria trajetória de sucesso e levantou a carreira de muita gente. Por ser construído apenas com material de arquivo da cantora, Andança evita as polêmicas, mas é um belo tributo a uma personalidade única da música brasileira e vale como importante registro histórico de um país que escuta muita música, mas conhece pouco de seus bastidores.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de fevereiro de 2025.