por André Cananéa*
O ano começou com duas baixas lamentáveis no cinema: o ator Sidney Poitier e o diretor Peter Bogdanovich, o primeiro, aos 94 anos, de causas não reveladas, e o segundo, aos 82, de causas naturais. Cada um, a seu modo, marcou a história da Sétima Arte.
Poitier foi o primeiro homem negro a ganhar um Oscar na história do cinema, em 1964. Entretanto, 24 anos antes, a atriz Hattie McDaniel fez seu nome ao ser consagrada com a estatueta de coadjuvante por ...E O Vento Levou, que na cerimônia daquele ano, 1940, não pode comparecer, pois a entrada a negros era vetada na América segregada.
Mas o Oscar de Sidney Poitier, pelo seu desempenho no drama Uma Voz nas Sombras (1963), era de protagonista, assim como ele seria um dos maiores protagonistas da telona naqueles anos de luta de 1960, cuja primeira metade foi sacudida por Martin Luther King com seu famoso discurso “Eu Tenho um Sonho”, em 1963.
Ativista, Poitier tinha uma visão exata do seu papel no cinema e, por isso, recusava personagens que evocassem o negro estereotipado. O Oscar foi importante para a igualdade racial? Foi (muito embora, hoje, ainda esteja longe da equidade), mas devemos lembrar três filmes que ele estrelou naquela década, uma trinca de produções importantes que chegou aos cinemas num mesmo ano, 1967, e que é tida por estudiosos como armas fundamentais para a luta contra o racismo: Adivinhe Quem Vem Para Jantar, No Calor da Noite e Ao Mestre, Com Carinho.
Ao Mestre, Com Carinho talvez seja seu filme mais conhecido e adorado. Coloca o ator no papel de um professor que ganha o respeito dos alunos rebeldes. Já em No Calor da Noite, ele é um policial que se envolve em um crime, ao mesmo tempo em que tem que lidar com um xerife branco e racista. E em Adivinhe Quem Vem Para Jantar, ele é um médico negro, noivo de uma moça branca, que entra em rota de colisão com os pais da futura esposa durante um jantar.
Poitier fez mais de 50 filmes e trabalhou até o início dos anos 2000, fazendo pequenos papéis em produções para TV. Sua última aparição no cinema foi em O Chacal, thriller policial estrelado por ele ao lado de Bruce Willis e Richard Gere. Também se arriscou atrás das câmeras, dirigindo nove produções, entre elas a comédia Loucos de Dar Nó, com Richard Pryor e Gene Wilder, sucesso de público e crítica.
Peter Bogdanovich – que chegou a dirigir Poitier numa sequência, para televisão, de Ao Mestre Com Carinho, em 1996 – pertenceu à turma que sacudiu Hollywood a partir do fim dos anos 1960, cujos integrantes incluíam Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Steven Spielberg. Era tido como um garoto-prodígio do cinema. Antes mesmo de dirigir sua primeira produção, já tinha no currículo monografias consideradas brilhantes sobre grandes diretores, como Alfred Hitchcock, Howard Hawks e Orson Welles, cujo Cidadão Kane despertou nele a vontade de ser cineasta. Portanto, antes de ser um realizador, era um grande estudioso da Sétima Arte.
O trunfo de Bogdanovich era estar lá, nos bastidores, acompanhando o trabalho desses e de outros grandes diretores. “Vi Hawks filmar El Dorado, Hitchcock fazer Os Pássaros”, disse em 1993 ao escritor Peter Biskind, em depoimento que seria publicado no livro Como A Geração Sexo-Drogas-e-Rock’N’Roll Salvou Hollywood. “Não existiam escolas de cinema naquela época; aprendi a dirigir vendo esses caras. Vi uma pré-estreia de O Homem que Matou o Facínora e sabia que estava vendo o último grande filme da Era de Ouro de Hollywood. Quando aquele trem vai embora eu pensei, é isso mesmo, é o fim de Ford. E o fim de Ford era, na verdade, o fim daquela época”, acrescentou o Bogdanovich, que chegou a fazer um baita documentário sobre o lendário diretor de faroestes, Directed by John Ford.
Seu know-how foi aplicado em filmes como A Última Sessão de Cinema, Essa Pequena é uma Parada e Lua de Papel, lançados em sequência, entre 1971 e 1973, e que acabaram se constituindo marcos da “nova Hollywood”. Mas o diretor era tido como arrogante e vaidoso como um pavão, o que atrapalhou bastante sua carreira. “Bogdanovich era arrogante, mas talentoso, inteligente, um diretor muito bom. Sabia o que dizer e quando dizê-lo. Ele tinha o mundo em suas mãos. Nada de ruim tinha acontecido, ainda”, disse a atriz Ellen Burstyn, que trabalhou com o diretor em A Última Sessão de Cinema.
Ele era tão obcecado pelos filmes dessa época de ouro que acabou ganhando do colega Robert Altman o apelido de “diretor Xerox”, uma alusão à mania dele, Peter Bogdanovich, de comparar suas produções com a de grandes diretores do passado, por exemplo: “Sessão de Cinema foi o meu Ford”, “Essa Pequena É uma Parada, o meu Hawks”...
Bogdanovich fez de tudo um pouco, do documentário sobre cinema e música a dramas, comédias e thrillers policiais. De acordo com o IMDB, o mais importante banco de dados sobre cinema do mundo, o diretor trabalhava na comédia One Lucky Moon quando morreu, na quinta-feira passada. O projeto ainda estava na pré-produção e nem elenco havia.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 11 de janeiro de 2022.