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Os fantasmas de Kleber Mendonça Filho

publicado: 05/09/2023 11h09, última modificação: 05/09/2023 11h09
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Cinema São Luiz, no Centro do Recife: filme é um olhar íntimo pela cidade - Foto: João Carlos Lacerda/Divulgação

por André Cananéa*

A viagem pessoal do cineasta Kleber Mendonça Filho pelo Recife (PE) da sua juventude rendeu um filme poético, com estética bastante diferente dos seus longas anteriores – O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau –, mas similar no processamento de ideias, extraído da boa escola de cinema europeu, aquela que diz que imagens falam mais do que todas as palavras do mundo.

Em cartaz no Bangüê, em João Pessoa, e em outras salas pelo Brasil, Retratos Fantasmas não é uma fita de terror, como poderia sugerir seu título, mas tampouco é um documentário. É um olhar íntimo de um artista que viu sua cidade, Recife, mudar com o passar dos anos, dos cinemas majestosos que não existem mais, do Centro da cidade que já viveu dias melhores, dos carnavais que ficaram na outrora.

Dividido em três partes, o filme costura momentos aparentemente distintos: o apartamento onde o cineasta cresceu; os cinemas que frequentou e, numa encenação rápida, um passeio de Uber pela cidade. Ao final da projeção, o espectador atento vai perceber que um fio conecta esses três momentos: o da transformação.

Ao passar cerca de meia hora falando do apartamento em que cresceu, no bairro de Setúbal, ele mostra como a habitação foi modificada por sua mãe, que acabou falecendo em meados dos anos 1990. Mostra como a habitação mudou após a morte dela, e reflete como o bairro também foi mudando com o passar do tempo, com a necessidade de mais segurança e o surgimento de arranha-céus.

O apartamento é o mesmo onde ele filmou boa parte de O Som ao Redor (para deleite dos fãs, ele entrega várias curiosidades de bastidor). É curioso que ele comece esse novo filme partindo do seu universo micro e particular, do lar, dos seus primeiros passos na realização audiovisual e do desabrochar de um cidadão socialmente consciente, para chegar ao macro, à cidade e sua condição de espaço público.

Mendonça Filho narra monocordicamente, com a voz pausada e texto bem simples e direto, todo o longa-metragem, que tem pouquíssimas entrevistas. Aliás, apenas uma: seu Alexandre, projetista do cinema São Luiz, no Centro do Recife. É uma entrevista informal, realizada nos anos 1990, quando Kleber saia com uma câmera na mão e a ideia de gravar os bastidores das salas de cinema.

Aliás, como nas lições do nosso Vladimir Carvalho, de gravar sempre e ver, depois, o que fazer com o material, boa parte de Retratos Fantasmas é recheado pelo acervo do próprio Kleber, um misto de imagens feitas tanto em VHS, quanto em um iPhone, como anotado nos créditos finais do longa.

Mas, segundo o próprio cineasta, isso, necessariamente, não faz do filme um documentário. “Eu gosto muito desse jeito do filme, acho bonito e é ótimo que as pessoas fiquem confusas. Uns dizem que é documentário e outros não sabem muito bem”, comentou, em entrevista ao Jornal A União, publicada na edição da última sexta-feira (dia 1º). “Minha relação com documentário é totalmente livre, mas eu entendo que existam barreiras”, acrescentou o cineasta.

Retratos Fantasmas não tem o compromisso de documentar – com documentos para além das imagens apresentadas e entrevistas com especialistas – as mudanças abordadas pelo diretor. O filme é como aqueles antigos álbuns de fotografias que nossos pais, ou avós, costumavam ter em casa, que Kleber Mendonça Filho vai folheando e lembrando para nós, espectadores, como era o mundo antigamente.

Alguns amigos observaram que o filme não prega a máxima nostálgica de que “antigamente era melhor”, muito embora eu enxergue que esse discurso, embora não falado, está impregnado nas imagens. Afinal, como não concordar que as salas de antigas – como o Cine São Luiz, com belíssimos vitrais e uma cortina vistosa , não são mais belas que as impessoais salas dos multiplexes de hoje?!

Esse raciocínio, a meu ver, está, por exemplo, na sequência final ficcionalizada, a do Uber, repleta de significados. Se o leitor que já viu o filme, percebeu, por exemplo, que para além do interior do carro, onde estão o diretor e o ator Rubens Santos (presente nos três longas anteriores de Kleber), só aparecem fachadas de farmácias, como quem diz “agora é tudo farmácia”, da forma que costumamos dizer por aí, com a nostalgia pertinente a nós, saudosistas.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 05 de setembro de 2023.