A mídia física segue fundamental para quem é cinéfilo, para quem deseja ir além do filme. Ao contrário dos catálogos de streaming, que pouco espaço dá para material extra (entrevistas, documentários, comentários de realizadores, de atores etc) DVDs e blu-rays têm sido valorizados pelos “bônus” que acompanham o filme, em edições cada vez mais caprichadas, com luvas em relevo, cards (cartões com fotos e/ou pôster do filme) e livretos. Belos objetos táteis!
A esta altura, o leitor já sabe que eu sou um colecionador de mídia física, justamente por esse arcabouço de análises, memória, bastidores etc. que os discos trazem. Minha mais recente aquisição é um filme que, por muito tempo, foi negligenciado no mercado brasileiro e só em maio ganhou edição nacional em blu-ray repleta de extras: a produção espanhola O Labirinto do Fauno (2006), do diretor mexicano Guillermo del Toro.
O Labirinto do Fauno é uma das obras-primas de Del Toro. É difícil apontar a grande obra-prima do cineasta mexicano, um grande estudioso do cinema que já declarou que seus maiores mestres são Alfred Hitchcock, Walt Disney e Luis Buñuel, referências que unem a mestreia do fazer cinema do primeiro, à pegada de fábula dos desenhos clássicos patrocinados pelo segundo e à textura surreal legada pelo terceiro.
Então esse é o universo que habitam obras como o próprio O Labirinto do Fauno (escrita e dirigida por Del Toro), A Forma da Água (que arrebatou quatro prêmios Oscar em 2018, entre eles melhor direção e melhor filme), Pinóquio por Guillermo del Toro (Oscar de Melhor Animação em 2023) e A Colina Escarlate, e ainda as séries The Strain: Noite Absoluta e O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro, esta uma espécie de suprassumo do universo deltoreano, povoado por monstros, vampiros, fantasmas, fadas, criaturas mitológicas, e que vale muito a sua atenção (está disponível na Netflix).
Pelos extras de O Labirinto do Fauno, fico sabendo que o filme é uma ideia antiga. Há, entre os featurettes disponíveis no blu-ray, a digitalização do caderno de anotações do cineasta, onde ele rascunhou os primeiros esboços do roteiro e, também, a concepção gráfica das criaturas que povoam a narrativa. Em linhas gerais, o enredo conta a história de uma garota, Ofélia (Ivana Baquero), que se muda com a mãe (Ariadna Gil), grávida, para a casa do padrasto (Sergi López), um capitão da ditadura Franco na Espanha do pós-guerra. O casarão é um antigo moinho e fica num lugar ermo, no meio de uma floresta.
Na primeira noite na nova casa, Ofélia acorda e, guiada por uma fada, vai até um labirinto e lá conhece um fauno, que propõe que ela execute três tarefas para provar que ela não é uma simples garota, mas uma princesa de um mundo mágico habitado por criaturas encantadas, como o próprio fauno.
Paralelamente, o capitão Vidal segue pregando tirania do regime fascista e lutando contra a ameaça rebelde, que a todo instante luta para derrubar o núcleo formado pelo capitão e seus subordinados no velho moinho.
Guillermo del Toro assume que criou O Labirinto do Fauno como um “filme-irmão” de A Espinha do Diabo, lançado cinco anos antes. Neste, ambientado no final da guerra civil, ele narra a chegada de um pré-adolescente a um internato para meninos, assombrado pelo fantasma de um desses garotos, que morreu prematuramente em circunstâncias misteriosas, que vão sendo esclarecidas à medida que o enredo avança.
Em Labirinto, há uma clara recriação do início da ação: os personagens principais, ambos naquela idade que são, a um só tempo, crianças e também quase adultos, donos da própria razão, iniciam suas jornadas chegando de carro aonde a história irá se desenrolar (no caso do menino, no internato; no caso de Ofélia, o velho moinho) e são conduzidos às suas jornadas mágicas por criaturas que não são deste mundo (fantasma no primeiro caso, e uma fada, no segundo).
Quem mergulhar fundo nesses dois filmes, sobretudo em O Labirinto do Fauno, vai notar o quão rico ele é em detalhes, tanto na concepção das cenas quanto na história. Por exemplo: o que leva Ofélia a quebrar a regra em sua segunda prova, quando ela encontra o Homem Pálido (criatura que enxerga pelos olhos que tem nas mãos), não é a petulância própria da idade, mas a fome que ela sentia por estar sem se alimentar em função de um castigo que lhe fora imposto no dia anterior. Isso não está dito, mas percebido por audiências atentas.
Afinal, Del Toro é esse diretor, alguém que se expressa de maneira rica, criativa e instigante, e que utiliza da tal “moral da história” dos contos de fada para construir suas narrativas de fantasia, em que monstros não são necessariamente o sapo gigante de três olhos, ou o Homem Pálido, mas alguém que está muito mais perto, no cotidiano, como um padrasto cruel e sem coração, ou um ambicioso funcionário de um internato. Esses monstros, tão reais, são os que realmente nos assustam.
*Artigo publicado originalmente na edição impressa do dia 25 de junho de 2024.