Conversar com Márcio Borges é conhecer capítulos importantes da história da música brasileira por quem fez parte dessa história. Letrista de algumas das músicas mais conhecidas (e regravadas) em torno do Clube da Esquina e de seus sócios (Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta etc.), Márcio é sócio-fundador desse movimento. Eu até brinco, dizendo que a carteira dele é a “003”, já que foi na porta da família Borges, em Belo Horizonte (MG), que o carioca Milton Nascimento foi bater em busca de abrigo musical.
No apartamento do Edifício Levy que Milton conheceu Lô Borges, o caçula dos irmãos, e, de largada, começaram a compor. Márcio não foi apenas a testemunha dessa gênesis, como tratou de escrever letra para aquela melodia que estava sendo criada ali, semente que germinou e se tornou o coletivo Clube da Esquina, que ficaria eternizado em dois LPs com esse nome, o Clube da Esquina, de 1972, e o Clube da Esquina 2, de 1978.
Márcio Borges passou por João Pessoa rapidamente no último dia 1º para lançar De Tudo Se Faz Canção: 50 Anos do Clube da Esquina, dele e da jornalista e Chris Fuscaldo, livro bilíngue repleto de depoimentos dos “sócios” do famoso clube, mais análises das faixas que compõem os discos e memórias.
Nessa rápida passagem pela cidade, consegui entrevistá-lo para o Tabajara em Revista, da Tabajara FM, atendendo ao chamamento de Adeildo Vieira e Cintia Peromnia. Nesse papo rápido conosco, quis que o Márcio contasse a relação musical do Clube da Esquina com o Nordeste, e ele, sem demora, elencou três nomes fundamentais para o coletivo: o percussionista Naná Vasconcelos (1944-2016), o contrabaixista Novelli e o fotógrafo Cafi (1950-2019), todos pernambucanos.
“O Clube da Esquina tem um DNA nordestino na nossa composição genética, com certeza. Por exemplo, Naná Vasconcelos foi um dos caras que inventou uma percussão em torno de nossas músicas. Nos nossos primeiros discos, ele era presença ativa, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos”. Inclusive, Naná toca no extraordinário LP Milton (1970), em que Bituca é acompanhado pelo Som Imaginário.
Novelli, nascido em Garanhuns e radicado há décadas no Rio de Janeiro, compôs várias canções com Márcio Borges, incluindo ‘Razão de paz’, lançada por Elba Ramalho em seu seminal Ave de Prata (1972). “Novelli tocou em “N” discos do Bituca, um excelente contrabaixista, que defendeu uma estética sonora com muito valor. Ensinou muita coisa pra gente. Ele era muito técnico e gostava de levar os discos que ele descobria para mim e Milton ouvirmos juntos, e ele ficava lá, igual a um professor: escuta esse acorde, olha a modulação, como ficou bonita… ele ficava pontuando o disco pra gente, como que ensinando a gente a ouvi-lo”, relembra.
“E o Cafi, Carlos Assunção Filho, o grande fotógrafo de O Clube da Esquina, registrou tudo daquela época”, acrescenta Márcio. Aliás, é de Cafi a foto dos dois garotos que ilustram a capa do clássico álbum de 1972, e que depois foi judicializada pelos dois meninos, já adultos.
À noite, quando nos encontramos no lançamento do livro, ele lamentou ter se esquecido de mencionar a influência de Luiz Gonzaga nos integrantes do Clube da Esquina. “Todos nós ouvíamos, né?! Ele era o Pelé!”, resumiu em um papo informal comigo.
Em meio à conversa, aproveitei para matar uma curiosidade beatlemaníaca da minha parte: por que ‘Para Lennon e McCartney’ tem esse título, se não há referência aos Beatles ou aos integrantes na letra (que é de dele, de Lô Borges e de Fernando Brant, lançada no já citado LP Milton, de 1970)?
“Ah, foi coisa do Fernando Brant. Ele queria escrever uma música para Lennon e McCartney, mas sabia que eles nunca iriam ouvir”, respondeu Márcio Borges. “Daí aquela coisa do (cantarola) ‘Eu sou da América do Sul / Eu sei, vocês não vão saber…’ Vocês, no caso, são eles (Lennon e McCartney)”. E vale lembrar que quando a letra foi composta ali, entre o final de 1969 e 1970, os Beatles ainda existiam (chegariam ao fim em 10 de abril de 1970).
Porém, Márcio pondera: “Mas acho que eles souberam sim” (risos). O letrista conta que, certo dia, comentou uma postagem de Sean Lennon, filho de John Lennon. “Ele tinha postado algo assim, ‘Hoje eu acordei tão Milton Nascimento’. Daí fui lá, comentei e me apresentei, e a partir daí ficamos em contato. Um dia ele me disse que no apartamento do pai dele, lá no (edifício) Dakota, tinha ‘aquele LP com dois garotos na capa’”, recorda.
Se você parar para pensar que até John Lennon tinha Clube da Esquina em sua casa, isso mostra o quão importante o disco é, e seu alcance é completamente mundial.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 07 de março de 2023.