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Parcialidade pode? Pode!

publicado: 28/06/2019 12h03, última modificação: 28/06/2019 12h03
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- Foto: Divulgação

tags: democracia em vertigem , imparcialidade , andré cananéa , petra


Cuidado! Há conteúdo explícito no filme ‘Democracia em Vertigem’, produzido pela Netflix sob a direção da mineira Petra Costa. O documentário é explicitamente de esquerda, e não se faz de rogado quanto a isso. Afinal, um filme pode ser tanto de esquerda, quanto de direita, e ainda assim, ser um bom filme. Petra não é a primeira cineasta a tomar partido. Silvio Tendler, diretor de ‘Jango’, e Michael Moore, do premiado ‘Fahrenheit 9/11’, fizeram isso antes ao lançar filmes que tomam partido. E são grandes filmes.

‘Democracia em Vertigem’ não esconde sua paixão pela esquerda. Mais ainda, sua admiração pelo ex-presidente Lula. Petra apresenta-o como um messias, um mártir, o que fica muito claro na maneira como ela monta a sequência da prisão de Lula, em abril de 2018, o clímax do longa-metragem. O documentário é um filme que o próprio Lula deve ter gostado de ver, com muita louvação e pouca crítica.

Essa aproximação tem suas vantagens e desvantagens. A vantagem é que ‘Democracia em Vertigem’ oferece um material valioso ao cobrir o vai-e-vem da política brasileira dos últimos sete anos, focado no impeachment de Dilma, na ascensão e queda de Temer e na prisão de Lula, a partir de uma ação da Operação Lava-Jato, cuja figura de proa é o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro. A chegada de Bolsonaro ao poder foge do foco, mas ele não é ignorado pela diretora.

Há imagens exclusivas dos bastidores desses eventos. A câmera de Petra chega aonde a cobertura jornalística não teve acesso, na sala em que Dilma e Lula assistiram, pela TV, a votação do Congresso que culminou com a abertura do processo de impeachment, e junto ao ex-presidente no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, onde ele ficou abrigado nas 24 horas que antecederam sua prisão.

Parte desse acesso, ela mesmo explica no filme, vieram das imagens feitas pelo fotógrafo pessoal de Lula, Ricardo Stuckert, o que já é um filtro em se tratando de abordagem. Quem viu ‘Entreatos’, sobre o primeiro mandato de Lula, e conhece os bastidores do filme dirigido por João Moreira Salles (e fotografado pelo paraibano Walter Carvalho), sabe que o petista controla com mão de ferro sua imagem pública - certa vez, li uma entrevista em que o diretor se queixava que o ex-presidente só deixou lançar o filme após ter garantida sua reeleição para o segundo mandato.

A desvantagem é que é a narrativa é um olhar parcial sobre os fatos ocorridos entre a derrocada da esquerda e a ascensão da direita. Mas quem falou que documentário tem que ser regido pela isonomia do jornalismo? E Petra deixa isso claro ao misturar sua própria história com a história recente do Brasil.

O filme de pouco mais de duas horas e narrado pela própria cineasta, em primeira pessoa, começa traçando um paralelo entre a vida da diretora e a reabertura democrática - ela é de 1983 e a reabertura começou no ano seguinte, com as Diretas Já de 1984. Aos poucos, vamos conhecendo Petra, ao mesmo tempo que ela nos leva por um relicário de lembranças de um passado recente na vida política do país.

Primeiro ela revela que os pais passaram os anos 1970 na clandestinidade, militando contra a Ditadura, sob a inspiração de Pedro Pomar, fundador do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), morto em 1976 (Petra tem esse nome em homenagem a ele). Mais à frente, outra revelação: a diretora é neta de um dos fundadores da construtora Andrade Gutierrez, empreiteira investigada Operação Lava Jato por envolvimento em desvio de recursos da Petrobras.

background da mineira o deu trânsito livre entre os petistas, inclusive acesso a Dilma, que se mostra uma personagem importante. Petra foi atrás da ex-presidente, passado o furacão que a destituiu do poder, e ouviu dela revelações que, em outros tempos, dariam boas manchetes: “Quando você percebeu que Lula estava te escolhendo (para presidente)?”, inquiriu a diretora. “Eu não queria”, respondeu, de pronto, Dilma, para então escolher as palavras com cuidado: “Aí é o meu problema com a... com a... liberdade. Mas era público e notório”. “E ele insistindo? ”, retrucou Petra. “Ele não fala. Ele faz política de fato consumado. O Lula é assim. Hoje eu acho que ele fala mais...”, ponderou Dilma.

‘Democracia em Vertigem’ chama a atenção por ser o primeiro documentário a se debruçar sobre o momento histórico em que o país viveu com a mudança de direção, da esquerda para a direita, o que não foi uma transição suave, como o filme mostra. Entre um movimento e outro, há escândalos, impeachment e muito acirramento. O longa pode até ser partidário, mas é necessário para que dele a gente extraia reflexões e saiba como deixar as bandeiras de lado, em prol de um país melhor. 

 

*coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de junho de 2019