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Paul McCartney e os laços afetivos

publicado: 05/12/2023 11h12, última modificação: 05/12/2023 11h12
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No DF, show inaugural da turnê ‘Got Back’, 10ª passagem de McCartney pelo país - Foto: Marcos Hermes/Divulgação - Foto: marcos hermes

por André Cananéa*

Eu já gostava dos Beatles antes mesmo de nascer. Vejamos: meus pais, na swing Santa Luzia dos anos 1960, ainda não se conheciam. Eram adolescentes, mas conheciam os Beatles. Em João Pessoa, se encontraram, se apaixonaram, se casaram e compraram discos… dos Beatles, inclusive. Então eu nasci, na aurora de 1975, quase cinco anos após os quatro rapazes de Liverpool decretarem extinto o grupo mais importante da história da música popular.

Os Beatles acabaram, mas a beatlemania, não. Eu cresci ouvindo Beatles, e também John, Paul, George e até Ringo em suas carreiras solos. Eles foram bem presentes na minha infância, adolescência e na vida adulta. Me ensinaram sobre música, atitude, poesia, cultura e conhecimentos gerais. Sim, afinal não é exagero dizer que parte do comportamento humano moderno se deve aos Beatles.

E aí, em 2011, nasceu o filho de um outro casal de fãs dos Beatles, nosso filho, meu e de Lilian. Gael já gostava dos Beatles antes mesmo de nascer. Ele me diz isso, hoje, do alto de seus 12 anos. Sim, igual a mim. Ele tinha pouco mais de um ano de vida quando McCartney veio ao Recife, em abril de 2012. Não pudemos levá-lo, mas ficou a promessa: um dia ele iria ver um Beatle de perto.

O tempo passou. Ele completou nove anos e a cegonha anunciou: uma irmãzinha iria se juntar a essa família beatlemaníaca. – Vamos chamá-la de Jude, igual a música ‘Hey Jude’?, propôs o agora irmão mais velho. E assim nasceu Jude. Pula para 2023, quando Paul McCartney volta ao Brasil e, desta vez, o filhão pôde realizar o sonho. Ao menos ele, já que a irmã que carrega no nome uma das mais belas canções dos fab four, ainda não tem idade para entrar em shows.

Assim, reunindo três gerações de fãs dos Beatles – meus pais, eu, Lilian e Gael, mais minha irmã e minha sobrinha – fomos à Brasília, assistir ao show inaugural da turnê brasileira de Got Back, décima passagem de Paul McCartney pelo país em 23 anos. E acredite, leitor, voltei a ver o ex-beatle, desta vez os olhos vidrados em Gael vendo Paul, e a emoção incontida daquele garoto de 12 anos que, como eu e meu pai, ama os Beatles (e, no meu caso, ainda os Rolling Stones).

No repertório de quase três horas, os Beatles têm a maior fatia (não, ele não cantou a nova ‘Now and then’), com direito a uma música gravada pelo The Quarrymen (‘In spite of all the danger’). O maior problema de um artista como Paul McCartney é ter muito mais sucessos e clássicos do que um único show comporta. Assim, muitas canções especiais ficaram de fora.

No setlist de 35 músicas, ele tenta equilibrar clássicos dos Beatles (20, num total, entre eles ‘Can’t buy me love’, que abre o show, bastante coisa da fase Let It Be e Abbey Road e o single ‘Hey Jude’, um dos pontos altos da festa) com hits de sua outra banda, Wings (das obrigatórias ‘Band on the run’ e ‘Live and let die’, com seu número pirotécnico, até ‘Let me roll It’, incrementada com acordes de ‘Foxy lady’, de Jimi Hendrix), praticamente desconhecida do grande público, mas importante para quem acompanhou a carreira pós-Beatles do músico inglês.

Some-se a isso uma meia dúzia de canções estritamente solo, entre elas faixas recentes, como ‘Come on to me’ e ‘Fuh you’, ambas de Egypt Station (2018), e ‘New’, do disco homônimo de 2013, fase mais eletrônica de Paul e já presente na turnê anterior, de 2019. E aqui, a meu ver, reside o maior problema do setlist, uma vez que ignora tudo que ele lançou entre Pipes of Peace (1983) a Chaos and Creation in the Backyard (2005), ou seja, nada de Flowers in the Dirt (1989), nem de Off the Ground (1993) ou Flaming Pie (1997), que têm ótimas canções, até melhores que as recentes.

Não é de hoje que a zona de conforto cerca o velho Macca, que apresenta basicamente o mesmo repertório de outras tours, alterando apenas uma meia dúzia de canções de um repertório que se arrasta há décadas, o que é uma pena, mas perfeitamente compreensível. Aos 81 anos de idade, Paul nem precisava fazer shows, mas mantém-se ativo apresentando uma energia descomunal, tocando de tudo um pouco (baixo, guitarra, piano e até ukulele) e cantando todas as músicas sem, sequer, parar para tomar um copo d’água – a única pausa que acontece em todo show é a saída rapidíssima antes do bis, que nesta turnê ganhou uma baita surpresa, um dueto entre o Paul diante dos nossos olhos e um John Lennon virtual, relembrando o encontro dos dois em ‘I’ve got a feeling’ no concerto que se tornaria o último show dos Beatles, no telhado da gravadora Apple.

Quanto à apresentação de 30 de novembro deste ano, em que nós éramos algumas das 55 mil pessoas que lotaram o estádio Mané Garrincha, mais do que a emoção (que é especial) de ver o autor e intérprete original de ‘Let it be’ e ‘Love me do’ cantar canções que integram nossa trilha sonora afetiva, foi ver Gael se virar para mim, me dar um abraço apertado (e também nos avós) e chorar copiosamente, o choro de gratidão por, enfim, estar ali, no que ele já vinha chamando de “o show da minha vida”. A emoção de ver um Beatle, então, teve um concorrente muito mais forte, o que fez daquele show o mais importante de nossas vidas.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 05 de dezembro 2023.