Apontado pela crítica cinematográfica como o filme mais fraco da franquia, Rambo 3 voltou a ser assunto com a retomada do poder do Talibã no Afeganistão, na semana passada. Isso porque a terceira aventura do famoso personagem interpretado por Sylvester Stallone, lançada originalmente em 1988, mergulha fundo nas raízes que deram origem ao grupo extremista, que hoje toca o terror na comunidade afegã.
Com o pretexto de resgatar seu velho parceiro de guerra, o coronel Trautman (Richard Crenna), refém da Rússia no Afeganistão, Rambo empreende uma aventura repleta de tiros e explosões (é emblemática a cena em que o personagem salpica pólvora em um ferimento a bala no abdômen e taca fogo a fim de cauterizá-lo), aliando-se aos rebeldes Mujahedin em uma luta contra o poderio bélico soviético.
Vale lembrar que, de fato, a Rússia, naqueles distantes – mas não tanto – anos 1980, empreendeu um ataque militar contra o Afeganistão, disposto a estender seus domínios. Situados em uma região profundamente estratégica na Ásia Central, antes da Rússia, o Afeganistão já havia sido alvo de cobiça de Alexandre, O Grande, Genghis Khan e a Inglaterra, como nos lembra um personagem do filme.
E é neste ponto que Rambo 3 volta a ganhar notoriedade. A história nos conta que, para conter o avanço soviético, o principal inimigo da Rússia naqueles tempos de Guerra Fria, os Estados Unidos, teve que intervir, financiado armas, munição e estratégias de guerrilhas para camponeses dispostos a sacrificar a própria vida por um bem maior, que era ter o Afeganistão livre de qualquer dominação estrangeira. Esses camponeses eram os Mujahedin.
No documentário em média-metragem Afghanistan: Land in Crisis (2002), de Laura Nix, que acompanha uma recheada edição em DVD com os três primeiros filmes protagonizados por Rambo, professores, estudiosos, político e até um ativista afegão, além de produtores do filme e do próprio Stallone, discutem o enredo de Rambo 3 e seu impacto na política internacional.
“Esta foi a principal operação da era Reagan”, afirma um dos especialistas, referindo-se ao financiamento de atos de guerrilha junto ao povo afegão. Outro destrincha que, como a guerra era “fria”, esse fornecimento de armas era algo velado, então a Casa Branca fornecia armamento soviético para o combate, para não dar na cara que quem fazia frente à Rússia era a América e, sim, o próprio povo afegão.
Somente quando a coisa apertou – afinal, os mosquetes Jezail não eram páreos para o poder de fogo do MI-17 russos – é que os EUA resolveram aumentar o poder de fogo dos Mujahedin, fornecendo mísseis capazes de derrubar helicópteros. “Foi a primeira vez que oferecemos esta tecnologia ocidental avançada para alguém fora da Nato”, afirma o autor de Afghanistan’s Endless War (inédito no Brasil), Larry P. Goodson, referindo-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte.
Nota histórica: a ocupação russa no Afeganistão durou cerca de 10 anos, até 1989. Quando eles partiram, os Estados Unidos também largaram os Mujahedin cheio de armas e sede de poder à própria sorte, contribuindo para os conflitos internos do país e, por tabela, para o fortalecimento do terrorismo. Cinco anos depois, surgiria o Talibã, cujas filas foram engrossadas justamente por ex-combatentes dos anos 1980, ou seja, ex-Mujahedin, além de ex-comunistas e estrangeiros (como um tal de Osama Bin Laden). “O Afeganistão se tornou exportadora do terrorismo”, crava um professor no documentário de Laura Nix.
Do esporte nacional praticado no Afeganistão, o Buzkashi, à passagem de Rambo pela cidade de Peshawar, na fronteira com o Paquistão, que nos anos 1980 era o centro do movimento da resistência afegã, abrigando refugiados – e, por conseguinte, cenário de muitos assassinatos, carros-bomba, espiões e intrigas – há muito da vida real afegã no enredo.
Até o personagem de Spyros Fokas (que quando eu vi o filme pela primeira vez, achei que fosse Omar Shariff) é inspirado no real Ahmad Shah Massoud, morto em um atentado suicida promovido pela al-Qaeda e os talibãs dois dias antes dos atentados de 11 de setembro de 2001. No documentário, Stallone – que chama Massoud de “herói” – conta que muitas das falas do personagem são verdadeiras, atribuídas ao “Leão de Panjshir”.
Mas, claro, predomina no filme a ficção. Apesar dos produtores jurarem que Rambo 3 foi feito para o entretenimento, com muito tiro, pancadaria e bomba, os especialistas dizem que seu lançamento provocou abalos para além de Hollywood. É que embora houvesse a cobertura de bravos e corajosos jornalistas, dispostos a se embrenhar no meio das balas, foi o lançamento de Rambo quem deu força ao assunto. Mas já era tarde.
Quando o filme estreou em 25 de maio de 1988 nos Estados Unidos (no Brasil, chegou quase três meses depois, em 19 de agosto), a Guerra Fria já derretia com um caloroso beijo do presidente russo Gorbachev na primeira-dama americana, Nancy Reagan, selando, justamente naquele mês, os processos que levaram ao fim do conflito entre os dois países. Para Stallone, a coincidência acabou, digamos, “prejudicando” a recepção do filme.
Não saberia dizer onde encontrar Afghanistan: Land in Crisis no vasto universo da internet, mas Rambo 3, assim como os dois primeiros filmes da franquia, estão disponíveis no catálogo da Netflix Brasil. Vale a revisão (histórica, no caso), nem que seja para o puro entretenimento. Afinal, é ruim, mas é desses filmes ruins que a gente adora! Só não sai dizendo por aí que gosta…
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 24 de agosto de 2021.