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Sal grosso no inferno ‘pop’

publicado: 21/11/2023 11h22, última modificação: 21/11/2023 11h22
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Fãs de Swift aguardando a abertura dos portões do Engenhão (RJ), na última sexta - Foto: Paulo Carneiro/Ato Press/Estadão Conteúdo

por André Cananéa*

A imagem seria engraçada, se não fosse trágica: no último domingo (19), circulou nas redes sociais uma foto de um fã de Taylor Swift jogando sal grosso em cima do ingresso para o show da cantora. É, só mesmo sal grosso para livrar o mau-olhado sobre a primeira passagem da popstar pelo Brasil, afinal não foi suficiente o Cristo Redentor recebê-la de braços abertos, mesmo vestido com a camisa Junior Jewels (utilizado em um videoclipe da cantora) e desejando boas vindas em inglês.

Por si só, a passagem da maior cantora pop do momento pelo país já era digna de nota. Taylor Swift é hoje o grande nome do showbusiness, movimentando cifras astronômicas (segundo a revista Veja, o volume de receita que ela gera é maior que o PIB de dezenas de países e só essa passagem pelo Brasil deverá movimentar R$ 400 milhões), sem falar em um séquito gigantesco de fãs ardorosos, que esgotaram em poucas horas os 180 mil ingressos colocados à venda para três dias de shows no Rio de Janeiro, realizados nesse fim de semana.

Acontece que esse furacão artístico encontrou no Rio um outro tipo de furacão, esse climático, na forma de um calor intenso, um verdadeiro efeito Fujiwara devastador, o que, segundo a cobertura da imprensa, teria causado a morte de uma fã da cantora que se postava na fila do gargarejo, mas desfaleceu no segundo número do repertório e chegou sem vida ao hospital.

O show inaugural da cantora, na sexta-feira passada, foi um cataclisma de horror: calor infernal, público privado de entrar com garrafas de água, cantora pedindo para levarem água para os fãs próximos ao palco e a lamentável morte de uma garota de 23 anos. Tudo isso desaguou como uma avalanche de repercussão, com fãs reclamando da produção nas redes sociais, ministro baixando portaria liberando a entrada de garrafas de água e obrigando produtores a oferecerem água gratuita em dias de forte calor e a T4F (produtora de shows) prometendo instalar ventiladores para refrescar o público.

Até que… no fim da tarde de sábado, entre postagens que lamentavam a morte de Ana Clara Benevides Machado e consultas aos termômetros da capital carioca, que passava dos 42° C e cravava aquele sábado como mais quente do ano, Taylor Swift anunciou o reagendamento do show daquela noite para ontem, segunda-feira.

“A segurança e o bem-estar dos meus fãs, colegas artistas e equipe técnica devem e sempre estarão em primeiro lugar”, escreveu a prudente Swift em suas redes sociais, mesmo com o reclame geral de quem já tinha dado sua cota de suor durante dias na fila e já estava dentro do estádio, quando ouviu o remanejamento da data.

A The Eras Tour, que além de três shows no Rio, prevê mais duas apresentações em São Paulo, sábado e domingo que vem, realmente entrou para a história. Não de uma maneira 100% positiva, afinal, além da morte da estudante sul-mato-grossense dentro do show, um outro fã chegou a ser assassinado durante uma tentativa de assalto enquanto fazia turismo em Copacabana (coincidentemente, Gabriel Santos também era do Mato Grosso do Sul), mas isso, em absoluto, não tem relação com o show em si, é o problema crônico do Rio.

A morte Ana Clara me lembrou outra tragédia, ocorrida em um show de grandes proporções, como da Eras Tour. Foi durante o festival de Altamont, Estados Unidos, em 6 de dezembro de 1969. Nessa noite, a grande atração era o grupo The Rolling Stones, que fechou uma escalação que contava com, entre outros, Santana e Jefferson Airplane.

A história registra que 300 mil pessoas se aglomeravam para tentar ver e ouvir grandes artistas em uma estrutura mínima de palco e som (nada de telão ou jogo de luz, que demorariam alguns anos para chegar), e sem qualquer apoio de segurança, os temidos Hell Angels acabaram por tentar colocar ordem no local.

Nesse barril de pólvora - registrado pelos documentaristas Albert e David Maysles – um homem foi assassinado, próximo ao palco, durante a apresentação dos Stones. No ano seguinte, em 1970, o filme dos irmãos Maysles saiu com o título de The Rolling Stones: Gimme Shelter, trazendo, impresso, a escalada de tensão que culminaria com o crime.

Claro que, assim como o Cristo Redentor, a gente quer receber nossos ídolos de braços abertos, poder guardar na memória a lembrança de vê-los ao vivo e, sobretudo, se divertir. O propósito do showbusiness é viabilizar essa experiência, mas segurança e conforto são itens imprescindíveis.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 21 de novembro de 2023.