por André Cananéa
Há quem diga que Missa da Meia-Noite, minissérie com sete episódios (com média de 60 minutos de duração, cada), é a grande obra-prima de Mike Flanagan, um diretor especializado em filmes de terror que migrou, com sucesso, para os seriados. Se você se interessa pelo gênero e assina a Netflix, já deve ter visto duas séries bem celebradas do cineasta, A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly.
Em Missa da Meia-Noite, ele sai das casas mal-assombradas para uma ilha de pouco mais de 100 habitantes. Essa ilha, que já foi próspera, lida com a falta de perspectiva e com seus habitantes envelhecendo sem qualidade de vida. O único refúgio dos moradores é a igreja, uma igreja católica, liderada por um monsenhor bastante idoso e já senil, por quem os habitantes têm tanto afeto que fazem uma “vaquinha” para que ele realize seu último desejo: conhecer Jerusalém, a Terra Santa.
A história decola quando um jovem padre, Paul (vivido com extraordinária competência pelo ator Hamish Linklater), desembarca na ilha se dizendo um substituto provisório do Monsenhor Pruitt, enquanto este recupera a saúde num hospital no continente. A chegada do Padre Paul vai trazer novas perspectivas aos habitantes do lugar.
Missa da Meia-Noite, que, além de soberbamente dirigida por Flanagan, foi escrita por ele, me lembrou bastante as histórias de Stephen King, que costumam reunir uma pequena comunidade com pessoas de personalidades conflitantes, acuadas sob alguma força externa que os obriga a ficar confinados, vide Sob a Redoma – reza a lenda que o seriado da Netflix mereceu até um elogio empolgado do autor de O Iluminado (em tempo: Mike Flanagan dirigiu Doutor Sono, baseado na obra de King).
Sem pressa, o espectador vai sendo apresentado aos principais moradores do lugar e se depara com um caldeirão de histórias pessoais que envolve tragédias, busca interior, fé (algumas vezes, exacerbada) e redenção, enfim, um povo que está sempre à espera de um milagre.
Não é possível falar muito mais do enredo, sob pena de estragar as boas surpresas da história. Sinopse e o próprio início escondem a verdadeira sacada por trás da produção e não serei eu a tirar esse prazer da sua experiência com o título. Mas há uma reflexão que eu gostaria de fazer, sem (muito) spoiler: Missa da Meia-Noite é um seriado de monstro, e mesmo utilizando o conceito clássico do termo, ele subverte essa ideia oferecendo uma outra perspectiva, que, propositadamente, é dúbia e leva a uma reflexão acerca de interpretações bíblicas e no que nós escolhemos acreditar.
O Velho Testamento e os Evangelhos são os textos que estão por trás de um enredo que se passa, quase todo, dentro de uma igreja/casa paroquial, em meio a missas, encontros e discussões, com uma fidelidade desconcertante aos ritos cristãos e ao livro sagrado. Reunindo, para além dos protagonistas, três personagens-chaves – uma médica, um xerife mulçumano e uma beata rígida e radical, que conhece cada vírgula dos textos bíblicos –, Flanagan procura abordar, ainda, intolerância religiosa, ciência versus fé e os múltiplos conceitos de morte.
Diferente das suas duas outras séries disponíveis na Netflix, nesta o cineasta cria longos diálogos, ou grandes monólogos, para entregar ao espectador os pontos de vista da teoria que ele cria para a história, assim como, tecer uma crítica à educação religiosa radical e às pessoas que não reconhecem qualquer outra religião para além da sua. Tal discurso, por exemplo, é ilustrado através de um embate preconceituoso da parte da beata contra o xerife mulçumano.
É muito rico como o diretor/autor inseriu os textos bíblicos na narrativa e como os personagens são bem construídos, a ponto de dar credibilidade a uma história que parte de uma interpretação absurda que, na verdade, procura passar um outro recado, de que a cegueira de uma fé radical pode evocar o inferno, mesmo que a intenção seja chegar ao Reino do Céu.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 05 de outubro de 2021.