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OPNIÃO

Spielberg em auto-homenagem

publicado: 17/01/2023 00h00, última modificação: 17/01/2023 12h24
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‘Os Fabelmans’: ficção em que a memória de Spielberg está presente o tempo todo - Foto: Foto: Merie Wallace-Universal/Divulgação


por André Cananéa*

No documentário Spielberg, da HBO (portanto, disponível no HBO Max), o diretor Steven Spielberg admite que o filme E.T. - O Extraterrestre tem muito de sua própria vida, de ter crescido em um lar sem a presença de um dos pais, haja visto que estavam separados. “Minha ideia inicial para esse filme seria sobre como um divórcio afeta a infância e como traumatiza a criança. Então o tema central do enredo seria: como preencher o coração de uma criança solitária”, conta o diretor no filme.

Mais cedo, nesse mesmo documentário, ele também confidencia que ao conceber Encurralado, marco inicial de sua carreira, tinha em mente que o misterioso caminhão que persegue um carro de passeio em uma estrada seria uma metáfora para o bullying que sofreu na juventude, por ser nerd, por ser judeu, e apanhar dos grandalhões.

Olhando em retrospecto, boa parte dos mais de 30 filmes que dirigiu para o cinema (sem contar as numerosas produções que bancou e roteiros que escreveu, como Poltergeist - O Fenômeno e Os Goonies) têm muito da vida pessoal do cineasta, espalhada em famílias disfuncionais ou em crianças em busca de alimentar algum vazio existencial. Tudo refletindo o Spielberg de antes da carreira cinematográfica, o que aconteceu ainda muito jovem (aos 20 anos já estava dirigindo estrelas do quilate de Joan Crawford em produções para TV).

Portanto, quem acompanha os mais de 50 anos de carreira do diretor de Tubarão, Caçadores da Arca Perdida, A Lista de Schindler e tantas outras obras-primas do cinema contemporâneo (a maioria, entretenimento de primeira grandeza), gosta ainda mais de Os Fabelmans, novo filme do cineasta, que está em cartaz nos cinemas e vem amealhando prêmios e indicações, despontando como um dos fortes concorrentes ao Oscar deste ano.

Os Fabelmans narra a história de uma família: pai, mãe e quatro filhos, um menino e três meninas. O filme abre com o filho mais velho, Sammy, ainda criança, indo pela primeira vez ao cinema. Na porta do lugar, os pais dizem o que o garoto irá encontrar naquela sala escura.

A partir daí, Sammy vai se apaixonar pela Sétima Arte, imortalizando momentos de sua própria vida doméstica com uma câmera que ganhou de presente, mas também criando seus próprios filmes, superando os poucos recursos técnicos com criatividade (como colocar um calço na areia para que, quando seus “atores” pisassem no chão, causasse o efeito de ter levado um tiro em um faroeste, por exemplo) e amadurecendo seu talento artístico, ao mesmo tempo em que amadurece enquanto pessoa.

O filme segue com as mudanças da família em função do pai (vivido por Paul Dano), um às da tecnologia que vai sendo cortejado por empresas cada vez maiores e acaba indo morar na Califórnia, para trabalhar na IBM. Nesse percurso, que também passa pelo Arizona, onde Spielberg morou boa parte da adolescência, há os sabores e dissabores do ambiente familiar, muitos dos quais tirados da própria experiência do diretor, inclusive uma desagradável surpresa que é revelada ao filho mais velhos a partir dos negativos de um rolo em Super-8.

Não se trata de uma cinebiografia do cineasta, no entanto, mas de um drama ficcional em que a memória de Spielberg está presente o tempo inteiro, até mesmo na reconstituição de seus filmes caseiros. Os sustos que dava nas irmãs, as brincadeiras da mãe (papel de Michelle Williams), como subir em uma árvore ou trazer um macaco para casa (“Spielberg nos disse: Em uma casa normal, os filhos querem trazer um macaco e a mãe é quem diz: isso é uma loucura”, lembra Leah Adler, a mãe verdadeira do cineasta, no documentário), as ausências de um pai workaholic, o bullying… está tudo no filme, creditado a um fictício Sammy e sua família.

A sensação é que Steven Spielberg quis fazer uma bela homenagem a ele próprio, e conseguiu! Sem ser cabotino ou presunçoso, ele injeta sensibilidade ao transmitir ao espectador sua paixão pelo cinema, através de sua própria persona, emprestada ao personagem principal. Porém, talvez exagere no melodrama.

O filme tem sequências sublimes (como quando a mãe dança sob as luzes de um carro em um acampamento de família), com movimentos de câmera que Spielberg vem praticando desde seu segundo longa, Louca Escapada, produzindo, assim, um filme único, inimitável em seu enredo, mas também em sua essência. E equilibra, muito bem, as angústias de um adolescente com o desabrochar de um cineasta.

O filme – sem pretender dar spoiler – termina com uma das lendas mais difundidas a respeito do diretor. Na sequência, Sammy vai ao encontro do lendário John Ford (vivido pelo diretor cult David Lynch), ídolo confesso de Spielberg e citado diversas vezes ao longo do enredo, através de filmes e pôsteres.

E lá está a lição de enquadramento que Spielberg supostamente recebeu do diretor de As Vinhas da Ira e Rastros de Ódio. Nos instantes finais, o jovem Sammy vai andando pelo estúdio de cinema, é quando ocorre uma mudança brusca na câmera. Uma prova de que Spielberg realmente aprendeu a lição, e deixa para a posteridade um cinema inteligente, criativo e, acima de tudo, sensível.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 17 de janeiro de 2023.