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Spotify, capitalismo selvagem

publicado: 01/02/2022 08h00, última modificação: 01/02/2022 12h33
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Neil Young (E) e Joni Mitchel (D) retiraram suas músicas da plataforma de streaming em protesto contra podcast negacionista que dissemina notícias falsas - Foto: Foto: Reprodução

tags: neil young , spotify

por André Cananéa*

Ainda estou besta com esse caso Neil Young x Spotify. Afinal, a plataforma de streaming escolheu um podcast que dissemina notícias falsas sobre a Covid-19 ao catálogo de canções eternizada por várias gerações do velho bardo roqueiro e que dizem, muito, a respeito de caráter, amor, relacionamento e até engajamento social, ambiental e político, bandeira que o artista tem levantado com mais afinco ao longo das últimas décadas.

No cerne da questão está, pasme, um contrato de exclusividade na casa dos US$ 100 milhões (aproximadamente R$ 536 milhões) com The Joe Rogan Experience, programa de entrevistas que se tornou o podcast mais ouvido da plataforma nos EUA. E na hora de escolher entre um contrato de quase meio bilhão de reais a um que rende ninharias – desconsiderando aí as avaliações sobre o conteúdo – a empresa não pensou duas vezes: ficou com o podcast de Joe Rogan, cujos anúncios chegam a US$ 1 milhão.

A esta altura, o leitor já sabe que Neil Young deu um ultimato do tipo “ou ele, ou eu” ao Spotify após a empresa manter no catálogo uma entrevista de Rogan com o médico Robert Malone, repleta de informações inverídicas sobre vacina contra Covid. O podcast foi ao ar dia 31 de dezembro e a entrevista foi rechaçada pela comunidade científica, o que motivou o protesto de Young.

O papo entre o apresentador e o médico dura coisa de três horas. Entre outras teorias da conspiração não comprovadas, Malone (que já teve conta no Twitter suspensa pelos absurdos que prega) argumenta que a sociedade norte-americana estaria sendo “hipnotizada” para acreditar na eficácia dos imunizantes e das medidas sanitárias para conter a pandemia.

É a mesma teoria maluca que outro gigante da música – mas completamente negacionista – vem disseminando por aí: Eric Clapton. E aqui cabe um parêntese: ao contrário do canadense Young, 76 anos, que segue ativo e lúcido, lançando um (ótimo) disco por ano nos últimos cinco anos, o inglês Clapton, alguns meses mais velho, que já foi chamado de “o deus da guitarra”, padece de uma doença neurológica chamada neuropatia periférica e há décadas não lança um grande álbum.

E o que fica de lição aqui: um artista, mais do que coerente com a sua obra, deve ser digno dela. E o gesto de Young, somado a tantos outros (como quando protestou ao saber que um festival do qual participaria era patrocinado por um banco que financiava escavações de combustível fóssil, ou quando cancelou um show em apoio a uma greve de trabalhadores do setor musical) o faz um exemplo de artista grandioso em todos os sentidos.

Clapton, um dos grandes músicos a trazer dignidade ao blues, numa época em que o gênero era esquecido ou marginalizado, um guitarrista de imensa técnica e criatividade abundante, tem passado os últimos tempos a manchar sua reputação artística com asneiras negacionistas e a propagar campanhas antivacina. Um fim de carreira melancólico, em que o homem por trás do artista apaga o deus que habita(va) naquele ser.

Voltando ao caso Joe Rogan: a referida entrevista foi derrubada pelo YouTube. O Spotify diz ter uma política de intolerância a conteúdos sobre Covid que disseminem as chamadas fake news, e afirma ter tirado do ar mais de 20 mil episódios com esse tipo de conteúdo. Mas ao ser questionada pelo Wall Street Journal, a empresa respondeu que essa regra não vale para o contrato com Joe Rogan que, além de ser um poço sem fim de fake news (não só relacionadas à pandemia), tem uma larga folha de falas preconceituosas, com racismo e transfobia e, mesmo assim, é um sujeito extremamente popular nos EUA.

Hoje, as músicas de Neil Young não estão mais no Spotify, como ultimou o artista na semana passada. Contemporânea do autor de ‘Old man’ e ‘Harvest moon’, Joni Mitchell também retirou suas canções da plataforma, em apoio à causa antinegacionista. Li que vários usuários do serviço também buscaram cancelar suas assinaturas, mas encontraram dificuldades, uma vez que o Spotify teria suspendido o suporte ao cliente.

Uma pena que interesses comerciais estejam – mais uma vez – acima da vida. No momento em que eu escrevo este texto, 5,6 milhões de pessoas em todo o Mundo haviam morrido em decorrência da Covid-19. Número que, ao meu ver, é bem menos interessante para o Spotify (e para Joe Regan) do que os R$ 536 milhões do contrato entre ambas as partes.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 1 de fevereiro de 2022.