O mundo dos super-herois não agrada a Martin Scorsese, nem a Francis Ford Coppola ou a Ken Loach. E as críticas desses três têm basicamente o mesmo fundamento: tais produções - sobretudo da Marvel - não conseguem fazer um mergulho profundo na psiquê humana, nem social, e muito menos conseguem arriscar sair da zona de conforto e apresentar uma linguagem cinematográfica arrojada, ousada ou transgressora. Tais produções são pensadas dentro de uma caixa, para atender ao nicho de mercado que hoje é polarizado entre a Disney (dona da Marvel) e a Warner Bros. (detentora dos direitos da DC Comics, casa do Batman e do Superman, por exemplo).
Mas esse ponto de vista, cuja tocha, Scorsese acendeu no começo de outubro, eu defendi na edição de 22 daquele mês. Na coluna de hoje, a ideia é lançar luz sobre três produções que são fora da curva nesse papo de super-heroi. Coincidentemente, são três séries atuais - uma delas sequer estreou ainda - que fogem ao esquema dicotômico de mocinho versos bandido que a Disney vem pregando há quase cem anos, em que para haver um bem, tem que haver um mal diametralmente oposto, em aspecto físico e moral, para que não reste dúvidas na percepção do público: o bem sempre vence.
Se você parar para pensar direitinho nos filmes que a Marvel vem lançando, os papeis são muito bem definidos nesse quesito. O patinho feio dessa turma, ao menos no cinema, é Deadpool, um super-heroi de moral ambígua, politicamente incorreto, que foge do padrão do bom mocismo. E aqui eu lembro: os dois filmes baseados no personagem de quadrinho não saíram pela Disney, apesar dele ser da Marvel, mas pela Fox, que detém os direitos do personagem (e agora a Fox pertence a… Disney).
Produção original da Amazon Prime, disponível no serviço de streaming para assinantes, The Boys é baseada na HQ homônima criada por Garth Ennis e Darick Robertson. Eles reimaginaram o mundo da seguinte maneira: o passe dos super-seres pertence a uma grande empresa que cuida da imagem e da carreira de seus contratados.
É como se o Capitão Pátria, Rainha Maeve e Trem-Bala - três do chamado Os Sete - fossem jogadores famosos, ou mega celebridades, cujo contrato prevê de anúncios de produtos a reallity shows. E nessa coisa de super-herói tendo uma carreira administrada por uma corporação, há negócios escusos, jogos pesados e muita passada de perna antes de um deles utilizar seu super-poder para salvar o dia de alguém.
Nesse universo imaginado por Ennis e ilustrado por Robertson, que tem como base a tradicional Liga da Justiça da DC, transposto com muita qualidade para o audiovisual, todo heroísmo é marketing, planejado pela equipe de comunicação da empresa para que a imagem de seu super-herói mantenha-se relevante e, consequentemente, lucrativa. E aqui, mais do que em Deadpool, a moral é tão ambígua que chega um momento em que você não sabe mais quem é vilão (de verdade), ou quem é herói (de verdade).
Em curso na HBO - ontem foi ao ar o quarto, de oito episódios - Watchmen também é baseado em uma HQ de super-heroi, e antes de Ennis reimaginar a Liga da Justiça, Alan Moore já havia feito isso décadas antes - nos anos 1980 - com a obra-prima homônima que sacudiu a mitologia do super-seres, brilhantemente ilustrada por Dave Gibbons.
Olhando direto para o seriado (portanto, deixando de lado o filme homônimo lançado em 2009), a produção da HBO toma uma série de liberdades em relação a HQ. A principal delas, até agora, é a luta entre os que se dizem heróis e a supremiaca branca (chamada Sétima Kavalaria, uma alusão direta à Sétima Cavalaria do General Custer) em uma realidade alternativa da América hoje (o ator Robert Redford é o presidente, só para dar uma ideia), em que justiceiros mascarados atuam ali, no limiar entre o bem e o mal e, não estranhe se você, de repente, não souber por quem torcer.
O terceiro título ainda nem chegou à TV - a série está em produção e deve estrear, no Netflix, no primeiro semestre de 2020 -, mas a HQ O Legado de Júpiter está aí, “nas bancas” como diria um grande amigo meu, com seu intricado enredo de conflito entre gerações. A história começa nos anos 1930, onde um grupo empreende uma excursão para um lugar que não está no mapa. Lá, os integrantes ganham super-poderes e voltam à América dispostos a lutar por um país melhor, inclusive interferindo na política.
Mas os filhos destes seres agora “iluminados” estão na direção oposta, vivendo de baladas, e sem nenhum comprometimento com os ideais dos seus pais. E o que me chama muito a atenção é que, se a Netflix for fiel à HQ publicada originalmente em 2013 (lançada em dois volumes no Brasil), com história Mark Millar (o mesmo de Kick-Ass e Kingsman: Serviço Secreto), teremos super-herois mais humanos que os inalcançáveis poços de moralidade do Capitão América e do Homem de Ferro. Heróis cuja humanidade os leva a trilhar, também, um limiar entre o que é certo e o que é errado.
Portanto, estão ai três obras que enxergam para além dos super-herois. Enxergam os intrínsecos mundos individuais que impulsionam uma sociedade complexa, que vai além da dicotomia restrita somente a dois lados distintos, o bem e o mal, avaliam o humano, com ou sem poderes, em toda a sua incoerência.