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Um jacaré no ‘blues’ raiz

publicado: 17/10/2023 14h09, última modificação: 17/10/2023 14h09
Capa de comemoração 20 anos da gravadora alligator - imagem reprodução.jpg

Detalhe da capa em comemoração aos 20 anos da gravadora Alligator Records - Imagem: Reprodução

por André Cananéa*

Dia desses, meu amigo jornalista Sérgio Pavanello me enviou, por WhatsApp, a capa de um álbum com a seguinte recomendação: “Você precisa ter esse disco”. O disco em questão era um CD duplo, lançado em 1991 em comemoração aos 20 anos da gravadora independente Alligator Records, de Chicago (EUA). A lendária “gravadora do jacaré” foi responsável por enviar às lojas alguns dos grandes clássicos do blues e do rhythm and blues lançados entre 1971 e 1991, e o CD é um ótimo portfólio dessa produção (felizmente, o álbum também está disponível nas plataformas digitais, como o Spotify, YouTube Music etc.).

Sempre vi a Alligator como uma espécie de continuação de sua conterrânea Chess Records, embora administrativamente não tivessem absolutamente nada em comum, apenas o interesse em registrar artistas sem contratos que estavam produzindo uma música fenomenal nos inferninhos da cidade. Inaugurada nos anos 1950, a Chess teve em seu elenco nomes como Muddy Waters, Chuck Berry, Bo Diddley e Etta James (há um ótimo filme sobre a Chess chamado Cadillac Records, de 2008).

A Alligator, claro, veio depois, quando um jovem de 20 poucos anos, Bruce Iglauer, viu Hound Dog Taylor, Brewer Phillips e Ted Harvey tocarem ao vivo numa birosquinha de Chicago chamada Florence’s Lounge e pensou: esses caras precisam ser gravados. E assim fundou a Alligator Records, que chegou a ter em seu catálogo nomes de peso do blues elétrico dos EUA, como Koko Taylor (que havia sido uma das estrelas da Chess), Charlie Musselwhite, Albert Collins e o albino Johnny Winter, entre outros.

Iglauer conta no encarte desse The Alligator Records – 20th Anniversary Collection que deixou a Delmark Records (também especializada em blues) para se tornar o empresário, produtor e até motorista de Hound Dog Taylor and The HouseRockers, nome do trio que o guitarrista manteve com os citados Phillips (guitarra) e Harvey (bateria) – não havia baixo na formação.

“A Alligator Records foi criada para fazer apenas um disco. Chamava-se Hound Dog Taylor and the House Rockers, que foi gravado em apenas duas noites na primavera de 1971, com a banda tocando as mesmas guitarras surradas nos mesmos amplificadores esfarrapados que usavam no Florence. Foi minha primeira tentativa de capturar o som e a sensação dos clubes de blues em um disco”, escreve no texto do CD.

Nos 20 anos que separam o início do selo do lançamento do CD, Bruce Iglauer informa que a Alligator Records lançou mais de 100 álbuns (a maioria batia ponto na tal Florence), e cita Son Seals, Big Walter Horton, Lonnie Brooks, Carey Bell, Magic Slim (que cheguei a ver, em 2007, em um show no Recife, dentro do projeto Oi Blues By Night) e Left Hand Frank. “Gosto de pensar que Hound Dog e o público de Florence teriam gostado de cada disco do Alligator, desde o blues-rocker mais selvagem até o álbum acústico mais silencioso”, afirma Iglauer, que escolheu, pessoalmente, cada faixa do repertório desse CD duplo.

The Alligator Records – 20th Anniversary Collection traz um total de 35 faixas, cujos créditos estão impressos no encarte, junto com o título e ano do LP em que cada gravação foi extraída. Há cada biscoito fino, que vou te contar… estão lá, por exemplo, a lendária gravação de ‘Trouble in mind’ feita por Big Walter Horton e seu filho, Carey Bell, e lançada em 1972. Também a épica ‘Going back home’, temperada com muito soul e que estabeleceu a carreira de Son Seals, aposta que a gravadora fez em um novato e que deu tão certo que Iglauer o elenca como um dos maiores orgulhos que ele teve junto à Alligator.

Há na seleção, também, encontros memoráveis, como Albert Collins e Johnny Coperland fazendo riffs de guitarra voarem ao redor de ‘Black cat bone’, ou A.C. Reed tirando um som com Stevie Ray Vaughan em ‘These blues is killing me’, ou o encontro monstruoso dos gaitistas Carey Bell e Junior Wells em ‘Second hand man’, lançada no extraordinário disco Harp Attack!, de 1990.

Então se você gosta de música, especialmente de blues e sua variação mais elétrica, eis aqui uma caixa de jóias com pedras reluzentes, trabalhadas artesanalmente em estúdio, com muita paixão, alma e dedicação. Então, morda esse jacaré e se deixe levar por solos de guitarra, que irão te conquistar.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 17 de outubro de 2023.