Todo movimento popular tem sua trilha sonora. Quem viveu as Diretas Já lembra de Fafá de Belém cantando ‘Coração de estudante’, de Milton Nascimento e Wagner Tiso. Bem antes, ‘Caminhando’, do nosso Geraldo Vandré, embalou passeatas contra a Ditadura Militar. O revoltante caso de George Floyd, um homem negro morto por asfixia por um policial branco, deflagrou uma onda furiosa de protestos nos Estados Unidos e também tem sua trilha sonora.
Li que o Anonymos, grupo de hackers que atua com ativismo digital, invadiu o sistema de rádio da polícia de Chicago e botou para tocar ‘Fuck tha police’, hit polêmico lançado em 1988 pelo grupo de rap norte-americano N.W.A. A procura pela canção aumentou 272% nas plataformas de streaming entre 27 de maio e 1º de junho, segundo o monitoramento da Alpha Data. Foi justamente quando os protestos ganharam força.
A morte de Floyd mostra que, apesar de ter mais de 30 anos, ‘Fuck tha police’ continua atual quando mostra o tratamento que a população afro-americana recebe de parte da força policial que age com brutalidade contra negros.
“Um jovem negro só se f**e só porque é escuro / E não de outra cor / Então a polícia acha que tem autoridade para matar a minoria”, diz um trecho da letra, repleta de palavrões e acusações contra a polícia, algo que gerou bastante controvérsia quando foi lançada (naquela época pré-internet, ela foi banida das rádios pelo conteúdo altamente explosivo, mas não deixou de ter notoriedade e ganhar o status de hino).
O preconceito é denunciado em vários momentos da canção (como em “Olham o meu carro, procurando algum produto / Acham que todos os negros vendem narcóticos”), incluindo um trecho em que o autor (o rapper Ice Cube) diz que é melhor um negro não ser apanhado por um policial branco e outro afro-americano “porquê eles vão te bater até o dia amanhecer, (afinal) os policiais negros gostam de se mostrar para os brancos”.
Não foi só ‘Fuck tha police’ que entrou na playlist do protesto batizado de “Black Live Matters” (em português, “Vidas Negras Importam”). Ainda de acordo com a Alpha Data, a empoderada ‘Say it loud - I’m black and I’m proud’, que James Brown passou a cantar a partir de 1968, após o assassinato de Martin Luther King, registrou uma procura ainda maior, com um aumento de 455% nas buscas.
‘This Is America’, que Childish Gambino lançou em 2018 com um videoclipe forte também para denunciar uma América racista, também registrou alta (149%), assim como ‘Fight the Power’, do Public Enemy (89%), e ‘Alright’, do rapper Kendrick Lamar (71%), entre outros.
Uma canção forte que aborda o tema não apareceu no radar, pelo menos até agora. Lançada em 1939 na voz de Billie Holiday, ‘Strange fruit’ falava de “frutas estranhas que pendiam nas árvores do sul”. Originalmente era a visão da professora Abel Meeropol, cujo poema inspirou a letra que denunciava o massacre de negros nos EUA e foi covardemente recursada pela gravadora de Lady Day, a Columbia, que achou-a polêmica demais (a rival Commorode acabou lançando a gravação, 80 anos atrás).
Infelizmente, casos de racismo contra cor e desigualdade social não são exclusivos da terra de Tio Sam. Nem a brutalidade policial. O Brasil está cheio de tristes exemplos, como a morte do adolescente João Pedro, mês passado, no Rio de Janeiro.
O tema vem sendo colocado na mesa pela Música Popular Brasileira há, pelo menos, 50 anos, quando Jorge Ben Jor cantava “Eu só quero que Deus me ajude / a ver meu filho nascer e crescer / e ser um campeão / sem prejudicar ninguém porque / Negro é lindo / Negro é amor / Negro é amigo / Negro também é filho de Deus” (‘Negro é lindo’, de 1971).
O tema pode ser encontrado no repertório de Toni Tornado (‘Sou Negro’), Gerson King Combo (‘Mandamentos Black’), Sandra de Sá (‘Olhos Coloridos’) e boa parte do cancioneiro do Racionais MCs (‘Negro drama’, ‘Racistas otários’, ‘Diário de um detento’), mas uma das canções mais fortes sobre o assunto foi lançado por Elza Soares no disco Do Cóccix Até O Pescoço (2002): ‘A carne’ (“A carne mais barata do mercado é a carne negra / Que vai de graça pro presídio / E para debaixo do plástico / Que vai de graça pro subemprego / E pros hospitais psiquiátricos”).
Atualmente, a bandeira é sustentada com força e talento pela nova geração do rap brasileiro, como Emicida (‘Mandume’), Karol Conka (‘Cabeça de nego’), Rincon Sapiência (‘A coisa tá preta’) e Baco Exu do Blues (‘Faixa preta’). São letras que não deixam esquecer que o racismo, infelizmente, ainda existe no século 21, que é errado e que oprime o povo negro sem que haja qualquer lógica por trás disso.