Após quase 50 anos ininterruptos de carreira e com a mesma formação desde o início, o U2 parece estar no que o grupo começou a cantar em 2000, quando lançou a canção ‘Stuck in a moment you can’t get out’: “Você precisa se recompor / Você está preso em um momento / E agora você não consegue escapar dele”.
Passada a pandemia, o grupo encontra-se, pela primeira vez, esfacelado. O baterista Larry Mullen Jr. está de molho, se recuperando de uma cirurgia em função de lesões nos cotovelos, joelhos e até no pescoço, o que o impedirá de participar da série de shows do U2, o UV Achtung Baby Live At The Sphere, que terá início em setembro, em Las Vegas (EUA).
O quietão Adam Clayton também anda sumido (mas deverá estar na turnê). Ele, por exemplo, não participa do novo documentário da banda, disponível no Disney+ desde o último dia 17. Para deixar claro que o grupo não está “rompido”, o filme, que sequer usa o nome do U2 – ficou Bono & The Edge: A Sort of Homecoming com Dave Letterman – começa avisando que o baixista não participou do projeto por estar realizando um “filme de arte” e, ao final, ganha (junto com Larry), um agradecimento especial dos colegas.
O documentário se conecta ao recém-lançado álbum Songs of Surrender, cujo repertório reúne releituras para 40 canções do U2, e à autobiografia do vocalista Bono, Surrender, lançada no final do ano passado. São três produtos que estão completamente integrados.
Passada a pandemia, o que o U2 oferece é um disco de sucessos requentados, velhos hits com novos arranjos (todos acústicos). Será o fim da carreira discográfica do U2? Os integrantes sentaram no trono da zona de conforto e viverão apenas dos antigos sucessos, como ocorre com muitos artistas consagrados?
Muito melhor é o filme. Bono & The Edge: A Sort of Homecoming com Dave Letterman é um título autoexplicativo: Bono e o guitarrista The Edge, o coração e o cérebro da banda, voltam à Dublin, cidade natal do quarteto, para uma reavaliação da carreira com o famoso apresentador Dave Letterman, fora do ar desde 2015, quando decidiu de aposentar da TV.
Não se trata, portanto, da velha e manjada trajetória, contada disco a disco, ou ano a ano. Isso já foi explorado inúmeras vezes. Aqui vale o papo entre três homens idosos, conversando não só sobre a carreira de uma banda de rock, mas, sobretudo, pelas raízes que os integrantes têm na Dublin dos anos 1970 e início dos 1980.
Letterman conduz muito bem as conversas sobre política, religião e sociedade na Irlanda de então. Fala com Bono, Edge e também com outros músicos locais, como Glen Hansard, mais conhecido pelo filme Once: Apenas Uma Vez (2007). Em meio ao papo, vocalista e guitarrista apresentam alguns sucessos do U2, em versões acústicas semelhantes às do novo disco.
A relação dos integrantes com a Renovação Carismática, no início dos anos 1980, métodos de composição e até um mea culpa de Bono em relação ao ativismo que, segundo ele, chega a “constranger” os colegas compõem alguns dos momentos mais significativos do longa-metragem. Letterman, por sua vez, vai crescendo ao longo dos 84 minutos de duração e se torna um personagem relevante, sobretudo graças ao seu humor ferino.
Ando lendo o livro de Bono. É muito melhor que 90% das autobiografias de astros de rock. No caso do vocalista do U2, ele procura lançar sua própria visão de mundo sobre o próprio mundo desde que pegou um trem de Dublin para Londres a fim de promover sua banda de músicos iniciantes. Assim, ele perpassa a carreira do U2, narra como a banda foi criada, mas não se atém somente a isso. Fala bastante sobre ser um jovem morando na conturbada Dublin, criado apenas pelo pai e o irmão (perdera a mãe bem cedo), e das políticas que movem o planeta.
Para ficar em um único exemplo, acabei de ler o capítulo em que Bono relembra o dia em que Mikhail Gorbatchov, ex-líder da extinta União Soviética, foi almoçar na casa do artista, e de como sua esposa, Ali, confrontou o político, afinal também era convidada do casal uma vítima do acidente nuclear de Chernobyl, ocorrido sob o governo de Gorbatchov.
Narrativa atual, Bono também relata quando ele e The Edge se encontraram com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em meio a guerra iniciada em fevereiro do ano passado. “A liderança ucraniana é como uma força vital com direção de arte que apresenta calmamente seus argumentos em favor da liberdade, enquanto Putin sussurrava nervosamente na direção dos quatro cavaleiros do Apocalipse”, escreveu o vocalista.
E que venha o próximo capítulo!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 28 de março de 2023.