Em um mundo digital, no qual, supostamente, os jovens têm algo a ensinar aos mais velhos, foi uma meia dúzia de idosos, boa parte já 80+, que parou o Brasil, no domingo, para dizer que alguma coisa está fora da ordem. Numa tarde modorrenta no Rio de Janeiro, Gilberto Gil, de verde; Caetano Veloso, vestido de amarelo; Chico Buarque, de azul; e Djavan, com uma camisa branca, aludiram à Bandeira do Brasil para protestar contra a absurda PEC da Blindagem (ou “PEC da Bandidagem”, como tem sido chamada).
Atos espalhados por todo o Brasil — incluindo João Pessoa e Campina Grande — reuniram milhares de pessoas para lembrar aos políticos do Congresso Nacional a quem eles, de fato, servem, e incluíram na pauta um sonoro “sem anistia”, em referência a outro projeto de lei que visa abrandar as penas de quem foi condenado pelos atos nefastos do 8 de janeiro.
Revezando entre a tela do celular e da TV, acompanhei o show coletivo que reuniu os quatro gigantes da MPB que citei acima, mais Ivan Lins, Paulinho da Viola, Geraldo Azevedo, Lenine e Frejat, que, junto a Maria Gadú, entoaram em conjunto hinos da nossa música, encerrando a apresentação com um repertório de Chico que, exemplarmente, se opôs à ditadura. “Vai Passar”, “Apesar de Você” e “Quem Te Viu, Quem Te Vê” foram ressignificados para este momento em que nossos representantes dão uma punhalada no coração do Brasil democrático ao instituir uma blindagem que dificulta investigações contra políticos, aumenta a imunidade parlamentar e enfraquece o combate à corrupção.
No geral, senti falta do engajamento das novas gerações, dos novos artistas e dos chamados “influenciadores digitais”, com força suficiente para mover um país. Essa luta é de todos nós, do cidadão realmente de bem, que se vê lesado enquanto nossa pátria-mãe, tão distraída, nem percebe que é subtraída em tenebrosas transações.
Em tempos de ditadura — militar ou não — foi a música que nos socorreu. Emblemático que o trio Gil, Caetano e Chico, que cunhou uma trilha sonora tão histórica, tenha sido perseguido por expressar o descontentamento diante de uma tirania imposta por um governo de exceção e agora une forças para, mais uma vez, tal qual Caetano no Programa do Jô, irritado com um repórter do jornal The New York Times, gritar para o Congresso que esse é um modo canalha de desrespeitar o Brasil, e nós não admitimos isso.
De cima do trio, o autor de “Podres Poderes” bradou: “A música popular no Brasil tem sido sempre um aspecto da cultura nacional que apresenta enorme vitalidade. Então, nós não poderíamos deixar de responder aos horrores que vêm se insinuando à nossa volta”.
Para além do propósito, o show coletivo foi histórico. Teve Caetano e Gil cantando a emblemática “Podres Poderes” com Gil: “Será que nunca faremos senão confirmar / A incompetência da América católica / Que sempre precisará de ridículos tiranos / Será, será, que será? / Será que esta minha estúpida retórica / Terá que soar, terá que se ouvir / Por mais zil anos”. Os últimos versos, infelizmente, soam proféticos. Afinal, mais de 40 anos depois, a canção soa absurdamente atual.
Outro momento histórico foi quando Chico e Gil cantaram “Cálice”, que recentemente veio à baila por conta de um suposto caso de plágio da parte da ex-baixista do Pixies, Paz Lenchantin. Mas a parceria dos dois, feita em 1973, e só lançada no disco Chico Buarque, de 1978, tem história. Recém-composta, os dois tentaram cantá-la no Phono 73, festival que a então Phonogram realizou em São Paulo, em maio de 1973, com os artistas do cast da gravadora. Com os agentes de repressão em cima do palco, Chico e Gil foram proibidos de cantá-la, mas insistiram mesmo assim, solfejando a melodia até terem os microfones desligados — principalmente porque um irritado Chico começou a gritar “Cálice” (cale-se?!). Creio que a própria gravadora tenha feito isso, receando que seus contratados fossem presos.
As imagens da multidão que tomou as ruas em diversas cidades do país impressionam. Em Salvador, Daniela Mercury recebeu no palco o ator Wagner Moura, estrela do filme O Agente Secreto, que representa o Brasil na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Internacional.
Em João Pessoa, o ato contou com a adesão de Val Donato, Adeildo Vieira, Seu Pereira, Cida Alves, Glaucia Lima, Diógenes Ferraz, Maracatu Baque Mulher e da atriz Dudha Moreira, conhecida por séries nacionais como Cangaço Novo.
Há registros que mostram que não só paraibanos foram às ruas, mas também o gaúcho Duca Leindecker (dos grupos Pouca Vogal e Cidadão Quem), que havia feito show na cidade na noite anterior.
Ao que parece, o esforço surtiu efeito. Vi no G1, ontem, um comentário da colega jornalista Andréia Sadi afirmando que os atos contra a blindagem e a anistia deixam a Câmara exposta, e o “bolsonarismo admite tiro no pé”. Com efeito, o Senado, para onde a PEC foi destinada após aprovação dos deputados, deve enterrá-la. Tomara.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de setembro de 2025.