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Você precisa ouvir Mark Lanegan

publicado: 01/03/2022 08h00, última modificação: 02/03/2022 09h11
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Lanegan, a voz agridoce do último roqueiro ‘junkie’ de Seattle, se calou aos 57 anos. - Foto: Foto: Divulgação

por André Cananéa*


A morte do cantor e compositor Mark Lanegan, na tarde (no Brasil) da última terça-feira (22), foi sentida por um discreto número de fãs que apreciavam a voz agridoce do último roqueiro junkie de Seattle. Lanegan, que havia completado 57 anos em novembro do ano passado, ganhou projeção a partir da cena musical que surgiu em Seattle (EUA) na virada dos anos 1980 para 1990 e, para mim, era a voz mais elegante e sincera daquela turma. Batia, de longe, o gasguita Kurt Cobain (Nirvana), o berrante Chris Cornell (Soundgarden), o árido Layne Staley (Alice in Chains) e a doçura de Eddie Vedder (Pearl Jam), que de tão doce me dá cárie – curiosamente, só Vedder permanece vivo hoje.

Lanegan nasceu em Ellensburg, a duas horas de Seattle. Se você tem até 50 anos, há de lembrar do Grunge como aquela onda que percorreu o mundo trazendo de volta a urgência do rock cru, visceral, que colocou o chamado “estilo alternativo” nas paradas de sucesso da música e influenciou de cortes de cabelo a vestuário, como fizera no passado o punk e o gótico. As bandas que citei no primeiro parágrafo constituíram o carro-chefe desse movimento.

Mark Lanegan surgiu através do Screaming Trees, um quarteto de rock que era melhor do que ela precisava ser – e merecia ter ido muito mais longe do que foi. Com o grupo, gravou um total de sete álbuns entre 1986 e 1996 (em 2011 saiu um derradeiro disco com material antigo). Quando ele começou a trilhar sua carreira solo, lançando The Winding Sheet (1990), os três principais títulos do ST nem haviam saído, a saber: Uncle Anesthesia (1991), Sweet Oblivion (1992) e Dust (1996).

O trabalho com o Screaming Trees foi um ótimo cartão de visitas. Quando ouvi Uncle Anesthesia ali, no ano do lançamento, através de um CD importado que meu tio Ronaldo trouxe do exterior, logo me chamou a atenção a dinâmica do vocal encorpado de Lanegan diante da muralha de guitarras distorcidas da banda… sabe quando você vê alguém em primeiro-plano, em câmera lenta, enquanto carros ao fundo da imagem passam a toda velocidade? Era assim que Mark Lanegan soava para mim naquele disco fabuloso, sua voz elegantemente pacífica, produzindo um efeito hipnótico sobre a urgência daqueles riffs barulhentos (vide o hit ‘Nearly lost you’, um sucesso na saudosa MTV).

Mas, enfim, a banda acabou antes de alçar voos maiores e Mark Lanegan seguiu para uma versátil carreira solo. De longe, sempre o via como aquele cara que era o “parça” da turma toda e que nunca recusava um convite. Cantou em discos de tanta gente que eu sou incapaz de contar… está em álbuns do Queens of The Stone Age, do projeto de música eletrônica Soulsavers (de onde saiu a belíssima balada ‘Revival’... ouça no vídeo abaixo), além de formar parcerias muito interessantes, com o contemporâneo Greg Dulli, do Afghan Whigs, e com a vocalista do Belle & Sebastian, Isobel Campbell (ambos grupos adorados no circuito universitário).

 

A própria discografia solo – cuja internet e os serviços de streaming de música a colocam a um clique de distância – é bastante diversificada. A largada, nos anos 1990, ainda era muito focada do rock distorcido de Seattle, mas nos discos seguintes, ele entendeu como os arranjos acústicos acomodavam bem sua voz cada vez mais maltada de whiskey e coração partido, entregando canções com acento folk, blues, baladas agridoces e rock agreste, até começar a experimentar guitarras altas, timbres eletrônicos e muita distorção (fermento que rendeu os elogiados Bubblegum, de 2004, e Blues Funeral, de 2012) e se entregar de vez à música eletrônica (caso do insosso Phantom Radio, 2014).

Mark Lanegan foi o único cantor solo estrangeiro que quase me fez pagar uma passagem para São Paulo só para vê-lo no Cine Joia (uma casa com capacidade para 1.500 pessoas) e voltar para João Pessoa. Isso foi em 2018, e embora até o ingresso fosse camarada (algo em torno de R$ 160), a conta, naquela época, não fechava e eu acabei desistindo. Uma pena. Era a melhor chance de ver, de perto, a voz de uma geração que me cativou bastante.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa 1 de março de 2022.