Comecei a ler a autobiografia do cineasta Woody Allen. Apesar de gostar de biografias, não sou lá um grande fã das autobiografias que são livros de memória, e memória seletiva, muitas vezes. Acreditava nelas até saber que Billie Holiday, a famosa cantora de jazz, inventou muita “fake news” (para usar um termo atual) a respeito de sua carreira em sua própria autobiografia, Lady Sings The Blues.
Então passei a ler as “auto” sem muito rigor, apenas para pinçar uma coisa ou outra de gente, cuja obra eu costumo admirar. A do músico Neil Young, por exemplo, tem muito do seu engajamento ecológico, sua paixão por trens de brinquedo e a ojeriza aos suportes digitais (CD, MP3 etc) e, vá lá, alguma coisa sobre sua música…
No momento em que escrevo este texto, ainda estou nas primeiras páginas de Woody Allen - A Autobiografia (Globo Livros), mas já dá para dizer, ao menos, uma coisa: o texto é divertidíssimo! E divertido em um sentido amplo, autodepreciativo, que não se vale da construção intelectual-erudita que ele apresenta em seus filmes, sobretudo os do início da carreira.
Aliás, intelectual - ele próprio diz - é algo que ele não é, como descreve nesta passagem: “É incrível a frequência com que sou descrito como ‘um intelectual’. Essa é uma concepção tão tola quanto o Monstro do Lago Ness, já que não tenho um neurônio intelectual em minha cabeça. Iletrado e desinteressado por questões acadêmicas, eu cresci como um protótipo do palerma que se senta diante da TV com uma cerveja na mão, assistindo empolgado a uma partida de futebol, com a página central da Playboy presa com fita adesiva na parede, um bárbaro vestido de tweed, com um paletó com protetor de cotovelos”.
E continua: “Não tenho grandes sacadas, pensamentos elevados e conhecimento da maioria dos poemas que não começam com ‘rosas são vermelhas, violetas são azuis’. O que eu tenho são óculos de aros pretos, e sugiro que esse acessório, combinado a uma propensão por me apropriar de citações de fontes eruditas profundas demais para que eu as entenda, mas que podem ser utilizadas na minha obra, que dá a impressão enganadora de saber mais do que eu sei, o que mantém essa lenda firme”.
Isso faz de Woody Allen um intelectual modesto ou uma fraude? Espero encontrar a resposta ao fim das 325 páginas da obra. No ponto em que estou, ele apenas falou das origens e dos pais, de como se apaixonou pelo cinema ainda criança, quando, lá pelos 5, ou 6 anos, era levado pelas mãos da prima, de 11, e os amigos dela para matinês de cinemas baratos em Nova York.
Conta como era apaixonado por mágica na infância, um bom esportista na adolescência e como sempre detestou ir à escola. Conta que, por volta de 15 anos, era um magricela que só sabia conversar sobre beisebol, quando as garotas com quem ele saía tinham um nível intelectual bem mais alto. E isso o levou a ler inúmeros autores clássicos, só para garantir um bom papo. “Eu não era um onívoro que engolia toda a literatura que via. Ler sempre competia com os esportes, filmes, jazz, truques de cartas e simplesmente não ler, porque as páginas impressas pareciam densas demais”, escreveu, antes de desfiar uma página inteira sobre obras e autores que gostou, ou não (“Achei Fitzgerald mais ou menos, mas amei Thomas Mann e Turguêniev”), e confessar que nunca leu obras como Ulisses, ou 1984, ou qualquer livro de Virginia Woolf.
No embalo, ele também desata a falar de filmes, elogiando alguns e, outros, não: “Quanto Mais Quente Melhor ou Levada da Breca - não achei nenhum desses engraçados. Nem gostei de A Felicidade Não se Compra. Francamente, eu adoraria estrangular o anjo da guarda fofinho. Adorava Hitchcock, mas não consigo entender a graça de Um Corpo Que Cai. Sou louco por Lubitsch, mas nunca considerei Ser ou Não Ser engraçado. Porém, Ladrão de Alcova eu achei um arraso, um ovo Fabergé”.
Bem, eu também não consigo entender a graça de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (filme que ele lançou em 1977), mas é como o próprio cineasta arrisca explicar: “É questão de gosto. Você pode achar essas modelos magricelas de lingerie sexy e, eu, não. Isso é só o que eu acho e não há nada que eu possa fazer quanto a isso”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 23 de março de 2021.