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Resenha

“Radium Girls” — o beijo fluorescente da morte

publicado: 10/07/2024 09h27, última modificação: 10/07/2024 09h27
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Sem serem alertadas do perigo, as trabalhadoras pintavam os mostradores dos relógios usando o elemento radioativo como base da tinta fluorescente | Imagens: Divulgação/ Moby Dick

por Audaci Junior*

A luminosidade sempre fascinou o ser humano, desde tempos imemoriais, como a descoberta do fogo.

Dando um salto cronológico kubrickiano, paramos no maior acidente radiológico da história acontecido fora de uma usina nuclear, em Goiânia, capital de Goiás, em setembro de 1987. Dois catadores de material reciclável venderam a um ferro-velho parte de um aparelho de uma clínica abandonada. Nele foi encontrada uma cápsula com um pó esbranquiçado, que brilhava na ausência de luz. A sedução luminosa da substância radioativa, o césio-137, espalhou-se pela cidade, resultando em quatro mortes e mais de mil pessoas afetadas pela radiação.

As consequências de manipulação de um elemento radioativo também atraiu a atenção da quadrinista francesa Cy, que ouviu falar de uma história inusitada ocorrida nos EUA, nos anos 1920, quando estava “passeando” pela sua timeline nas redes sociais. Em Radium Girls —A História das Operárias Envenenadas por Rádio (Moby Dick, 136 páginas), a artista usa sua paleta de oito lápis de cor para recontar recortes da época focado em meia dúzia de mulheres que mudaram as suas vidas por conta da negligência que irradiava impunemente.

O grupo de amigas trabalhava com outras mulheres como pintoras de mostradores de relógios que brilham no escuro na cidade de Orange, em Nova Jersey. Com uma produção de centenas de aparelhos para entregar diariamente, a técnica usada era a do “lip, dip, paint” — elas eram instruídas a passar os pincéis entre os lábios, cuja ponta fina que era moldada mergulhava em uma tinta verde fluorescente e passada nos indicadores de horas dos relógios.

O problema era a matéria-prima (caríssima) que elas manipulavam — e ingeriam aos poucos! — sem nenhuma proteção ou consciência das consequências: o rádio, substância extremamente radioativa. Para se ter uma ideia, ele é um milhão de vezes mais radiativo do que a mesma massa de urânio.

As trabalhadoras eram chamadas de “meninas-fantasma”, pois o próprio corpo brilhava no escuro por inteiro devido a contaminação. Em determinada cena da obra, as mulheres pintavam os relógios no térreo da fábrica, enquanto os homens da empresa usavam aventais de chumbo e pinças de marfim em seus laboratórios para manipular a substância.

A ignorância não se restringia apenas àquelas mulheres. Visando o lucro, as empresas divulgavam que o rádio era benéfico para a saúde, sendo possível encontrar cosméticos, tônicos e produtos como leite e pasta dental com o elemento incorporado nos seus ingredientes. Até os jornais apontavam que o rádio “acrescentaria anos às nossas vidas”.

Infelizmente, antes de descobrir que o rádio provoca uma série de problemas de saúde, como a queda dos dentes, abortos e o óbito, o fascínio pela luminosidade não tinha barreiras, desde pintar as unhas até usar vestidos de festa durante o trabalho para que eles brilhassem à noite, nos bailes.

Apesar dos recortes de Cy ter certo humor nas atitudes das protagonistas, a autora sabe explorar o lado dramático, mesmo que não mostre toda “monstruosidade” que essa negligência fez com as suas vítimas, mulheres que ajudaram a melhorar os direitos trabalhistas das próximas gerações, mesmo dando suas vidas, involuntariamente.

Em tempo: há um filme homônimo de 2018 (mas não é uma adaptação da HQ), dirigido por Lydia Dean Pilcher e GinnyMohler, com Joey King (da série The Act) no elenco.

Outro longa-metragem interessante é Radioativo (2019), dirigido pela quadrinistae cineasta iraniana MarjaneSatrapi (de Persépolis), com Rosamund Pike e Sam Riley nos papéis de Marie e Pierre Curie, respectivamente, o casal que descobriu o elemento rádio no final do século 19. O filme é baseado na obra Radioativos —Marie & Pierre Curie, uma história de amor e contaminação (Quadrinhos na Cia.), de Lauren Redniss.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de julho de 2024.