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“Vai ter que sofrer, vai ter que chorar”

publicado: 25/10/2023 00h00, última modificação: 27/10/2023 13h10
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Cena do episódio ‘Couro de Gato’, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade - Foto: Cinemateca/Divulgação

por Audaci Junior*

Na próxima sexta-feira, o Cine Bangüê, em João Pessoa, vai receber a mostra A Cinemateca é Brasileira até o dia 7 de novembro. Um bom panorama do que há da “nata” do cinema nacional, que foi adiado por problemas técnicos com o projetor da sala de cinema. Nessa “retomada” (o cinema sabe muito bem disso, desde os anos 1990), haverá um filme a mais nessa seleta programação: o clássico antológico Cinco Vezes Favela (1962), um leque de curtas-metragens feitos a 10 mãos por Marcos Farias, Cacá Diegues, Miguel Borges, Leon Hirszmann e Joaquim Pedro de Andrade. É o episódio deste último cineasta que quero destrinchar: Couro de Gato.

Bastou apenas 14 minutos incompletos para o curta ser uma pequena obra-prima desse projeto (que ganhou, em 2010, a iniciativa Cinco Vezes Favela – Agora por Nós Mesmos, dirigido por grupo de jovens cineastas moradores de favelas do Rio de Janeiro e produzido por Cacá Diegues). Agindo em perfeita harmonia de uma escola de samba, é nítida a evolução da trilha sonora, edição e fotografia perante um mote simples. Nos quatro cantos da cidade do Rio de Janeiro, quatro garotos da favela tentam a sorte para “caçar” gatos, que – através de uma breve narrativa em off – sabemos que dão os melhores tamborins para o Carnaval.

Inclusive, para essa introdução sobre o couro felino, é colocado uma série de desfiles carnavalescos ao som de ‘Quem quiser encontrar o amor’ (“Quem quiser encontrar o amor / Vai ter que sofrer / Vai ter que chorar”), música do paraibano Geraldo Vandré com o carioca Carlos Lyra, faixa pertence ao álbum Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores.

Quando um desconfiado gato preto é enquadrado pela câmera, logo se tem uma batucada em marcha, assustando o bichano (que, na verdade, captou a intenção de um dos garotos).

Nesse jogo de “gato e rato”, o filme corre em paralelo por quatro narrativas, até elas se cruzarem no sopé do morro. Em uma delas, há uma dondoca no jardim, que convida um dos “caçadores”, aninhado na base do seu portão, olhando fixamente para sua direção. Ela é seduzida pela timidez do moleque. Ele é seduzido pelo couro do gato de estimação da senhora, tranquilamente despreocupado pela grama. Ambos são vigiados pela desconfiança do chofer, que está lavando o carro da patroa. Ela convida o garoto para um refresco. Aí fica o tal de um “olho no peixe e outro no gato”.

Pelos barbantes dos títeres do destino, a cama de gato é feita. A dondoca com o chofer, o garçom, o guarda e o carpinteiro – no topo da cadeia alimentar social daquela situação – os meninos da favela, que ganham com “bicos” de engraxate ou vendendo amendoim torrado, e os felinos que não confiam nem nas suas sete vidas (ou nove, dependendo do seu local de origem).

Apenas uma das quatro narrativas logra êxito. Antes de tomar a decisão, o garoto acende um cigarro, dá uma baforada no focinho do bichano (sempre vi esse ato mais como um ato daquelas animações cujo gato está de olhos enfaixados e fumando perante o pelotão de fuzilamento do que uma ação de camaradagem), e chega a compartilhar a sua boia-fria com ele. Até perceber que a fome é um dos motivos que o encoleira para o que vai fazer: jogar o bichado para sambar na Estação Primeira da Cova dos Leões.

De fato, alguém “vai ter que sofrer, vai ter que chorar”. Uma aula de cinema. Um belo filme.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de outubro de 2023.