Nesses meus 20 anos dedicados ao jornalismo, poucas pessoas são tão humildes, simpáticas, atenciosas e dedicadas como Vladimir Carvalho, que “se encantou” na última quinta-feira (24), em Brasília (DF), sua terra adotiva.
Qualquer “Wikipedia” da vida estaria estampado algo assim: “Vladimir Carvalho nasceu em Itabaiana, no estado da Paraíba, em 31 de janeiro de 1935. Ainda criança é conduzido à Recife, onde vive aos cuidados da tia materna, para cursar o primário. Em 1949, volta à Paraíba e estabelece-se em João Pessoa”. Porém, eu queria prestar a minha reverência com um recorte bastante peculiar de um dos maiores cineastas desta terra: sua paixão pelas histórias em quadrinhos.
Essa faceta de Vladimir Carvalho nos foi presenteada há 15 anos, em uma entrevista coletiva realizada por parte dos membros do finado programa Comic Show, iniciativa para falar sobre de quadrinhos em uma época não muito distante, mas que ainda “só havia mato” no YouTube e seus genéricos.
Abrigados em uma singela tenda em virtude das precipitações do começo de maio de 2009, em plena edição do Cineport — Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, que acontecia na Usina Cultural Energisa, em João Pessoa, eu, o jornalista e crítico Renato Félix e Manassés Filho, dona da gibiteria Comic House (com outro jornalista como testemunha, Breno Barros) ciceroneamos um sempre disposto e empolgado Vladimir. Disposto em abrir as janelas das suas reminiscências, mesmo diante daquele toró; e empolgado por mergulhar nos multicoloridos matizes do tema.
“A afinação da minha alfabetização já se deu eu lendo Doidinho”, puxava pela gaveta da memória com a maior facilidade do mundo, já que — anos depois, aqui mesmo, em A União — o cineasta iria confidenciar que o romance de José Lins do Rego (1901-1957) seria o seu primeiro longa-metragem de ficção. Infelizmente, apenas ficou no papel. “Meu pai lia aquilo e eu ficava fascinado. Um menino que fugiu do colégio, em Itabaiana, pega o trem e volta para o engenho do avô. A minha idade batia, mais ou menos, com a daquele menino”.
Preocupado com a educação do garoto de nove anos, o pai de Vladimir o “exilou” na casa dos tios, em Recife, Pernambuco. “Lá eu tive uma intensa relação com as histórias em quadrinhos, porque tinha o Gibi, O Guri, As Aventuras do Capitão Marvel, o Príncipe Namor, que era O Príncipe Submarino, Tocha Humana, Tarzan...”, elencava.
Isso em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, que fazia os multicoloridos super-heróis se entrelaçarem com o cinza da realidade. Os inimigos do Eixo e o próprio Führer eram feitos de “saco de pancadas” para esses personagens que ele adorava.
Assim como Vladimir Carvalho foi uma testemunha ocular da história (e das histórias em quadrinhos), documentando e “decantando” as imagens e os sons de sua filmografia como se fossem vinho, naquela noite ele foi presenteado (e apresentado) com uma edição de Área de Segurança Gorazde — A guerra na Bósnia, do jornalista maltês Joe Sacco, um dos mais importantes representantes do jornalismo em quadrinhos.
Assim que ele foleou o volume, logo Vladimir identificou o traço underground com outro dos grandes da Nona Arte: Robert Crumb. “Acho extraordinário! Tudo que aparece de Crumb, eu devoro”, confessou o realizador.
A “cereja do bolo” da entrevista foi quando o mestre audiovisual lembrou do seu igual na área quadrinística. “Aquele outro de O Edifício, como é que se chama? Will Eisner. É um artista!” E, sem cerimônia, teorizou: “Eu arrisco dizer que o Edifício Master provavelmente o (Eduardo) Coutinho leu, entende? É o ‘clima’, a biografia de um edifício”.
Dono de uma sensibilidade bastante apurada, em O Edifício (1987), Eisner (1917-2005) narra a história de décadas de um prédio por intermédio de quatro fantasmas; já o documentário Edifício Master (2002) é sobre os habitantes do antigo e tradicional imóvel situado em Copacabana, no Rio de Janeiro.
Vladimir conhecia bem o Coutinho para tal afirmação, já que eles caíram na clandestinidade juntos, quando estourou o Golpe Militar no país, na mesma época das filmagens iniciais do visceral Cabra Marcado para Morrer (1964–1984).
Assim como Glauber Rocha (1939-1981) era fã do gibi Jerônimo, o Herói do Sertão, como já testemunhou o jornalista Carlos Aranha, quando estava morando na casa do cineasta baiano, na capital carioca, nos anos 1960 (ele pediu para o paraibano ir compra um exemplar na banca da esquina), Vladimir Carvalho era fissurado pelos seus conterrâneos velhos de leitura. “Se eu encontrasse uma loja ou um sebo onde tivesse as coisas que lia há 60 anos, eu ia fazer muito sacrifício... ia adquirir tudo só para abrir, reler e rever”, confidenciou o homem que tinha o brilho ávido de um garotinho apaixonado de nove anos de idade.
Um recorte significativo para um dos meus porta-retratos da memória jornalística. Salve, Vladimir.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 30 de outubro de 2024.