Em um dos vários shoppings de uma metrópole, uma atriz chamada Odile B., passa pelas centenas de lojas do complexo para subir ao palco da única sala de teatro, que existe no “bunker do consumismo”, e interpretar seu personagem na peça feminista.
Ao sair da encenação, ela é atacada por um grupo de homens no estacionamento. Já, a mão da justiça a trata como culpada, não como vítima. Por conta disso, Odile decide fazer justiça com as próprias mãos...
Esse é o início de uma cruzada urbana, na qual a protagonista, dia após dia, noite após noite, vai literalmente assassinando os “crocodilos” da sociedade patriarcal e machista.
Considerada uma das mais relevantes artistas dos quadrinhos franceses nos últimos 50 anos, Chantal Montellier foi descoberta pelos leitores e leitoras brasileiros recentemente, por conta da coletânea Social Fiction (Comix Zone), lançada no ano de 2022. De lá para cá, veio ainda Bruxas, Minhas Irmãs (Veneta, 2023). Antes, o público só apreciou a sua narrativa visual em O Processo (Veneta, 2014), adaptação do famosos livro homônimo de Franz Kafka, pelo roteirista David Zane Mairowitz.
Em Odile e os Crocodilos (Comix Zone), a mais recente publicação da quadrinista francesa por aqui, o tom é de uma “fábula sem moral” sobre o tema do estupro, em que a personagem principal se transforma em um “anjo exterminador” contra a submissão da mulher.
“Odile é um pouco minha musa, ‘a agente incondicional que realmente vai pôr um fim ao reino dos Crocodilos’, como escreveu Thierry Smolderen num artigo dedicado a este álbum”, apontou a autora, no prefácio da história em quadrinhos.
Marcada pelo seu engajamento político e por uma denúncia radical de todas as formas de violência e opressão, Chantal Montellier ainda é um exemplo de como o ofício de artista é de alto risco, mesmo nos dias atuais. “Alguns álbuns, como Odile e os Crocodilos e Blues ou Les Rêves du Fou [“Os sonhos do louco”, em tradução livre], me custaram muito caro e me renderam muitas agressões. O que é paradoxal é que eu quase não me deparo mais com uma crítica negativa sobre meu trabalho, quando passeio pela internet. Sempre me consideram uma autora maior, uma pioneira. Mas, em instituições como o Festival de Angoulême, nunca tive direito a uma exposição. Mesmo não correndo atrás, acho injusto com relação a outros que tiveram direito a honras, aos holofotes, a alguma forma de reconhecimento”, contou ela em uma entrevista publicada na Métal Hurlant Hors-série: Ah!Nana, em outubro de 2023, que está reproduzida, na íntegra, na edição brasileira.
Montellier iniciou a sua carreira nas artes plásticas, como professora e pintora, e chegou a expor no Grand Palais de Paris, em 1972. Nesse mesmo ano, estreou como quadrinista em publicações de esquerda. Também publicou na grande imprensa, em jornais e revistas como Le Monde e L’Express, e foi uma das estrelas de revistas em quadrinhos célebres como (À Suivre), Charlie Mensuel e Métal Hurlant. Foi também uma das principais colaboradoras da revista feminista Ah!Nana.
Em suma, uma artista que é necessária para o nosso cenário atual, principalmente para ir de frente às ideias de que “meu gibizinho não precisa ter política”, pensamento vigente para os leitores com “viseira de burro” que só olham para cima, querendo avistar as capas multicoloridas de seus super-heróis favoritos.
Nada contra apreciar esse gênero, mas devemos também visar as preocupações sociais de nosso tempo e a denúncia radical de todas as formas de violência e opressão, características e marcas registradas nas obras da madame Montellier.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de dezembro de 2024.